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Educação física na Educação Infantil e o currículo da formação inicial






INTRODUÇÃO

Este trabalho tece uma análise da formação dos professores de Educação Física de uma universidade estadual baiana no que se refere à inserção do futuro professor como educador na escola de Educação Infantil.

Existe no campo da Educação/Educação Física (EF) a necessidade de ampliação de estudos no campo específico da atuação com os "pequenos", visando ultrapassar a lógica instrumental, que vem sendo debatida em nossa área já há algum tempo. Como afirma Soares (2001/2002, p. 23), "a Educação Física é uma área de conhecimento escolar, que possui saberes que vêm sendo construídos historicamente e que conferem significado ao movimento". Compartilhando desta ideia, ratificamos que as práticas da cultura corporal são, também na Educação Infantil, a especificidade pedagógica e a contribuição da EF como área de conhecimento escolar. Portanto, através das aulas de EF as crianças devem participar como sujeito sócio-histórico produtor de cultura, de modo que a intencionalidade pedagógica deve compor o trabalho do professor de EF.

Some-se a isto o fato de que a maioria dos professores que atuam na Educação Infantil, inclusive os de EF, são formados em serviço, aprendem a fazer fazendo, sem capacitação que dê conta de uma ampla formação teórica e política.

Diante do exposto, tivemos como problema do estudo: O atual currículo do curso de Licenciatura em Educação Física da universidade pesquisada oferece subsídios para atuação dos futuros professores nas escolas de Educação Infantil?

Portanto, o objetivo foi identificar se o currículo atual de Licenciatura em Educação Física da referida IES oferece elementos para uma ação pedagógica intencional e deliberada dos futuros professores na Educação Infantil.

Para tanto, foi necessário analisar a EF enquanto componente curricular na Educação Infantil, e compreender a relação entre a estrutura curricular do curso de Licenciatura em Educação Física da IES pesquisada e a formação dos professores para atuação na Educação Infantil.

 

EDUCAÇÃO FÍSICA ENQUANTO COMPONENTE CURRICULAR DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Aproximadamente até o final da década de 1980, a produção teórica da EF escolar esteve voltada, principalmente, para o Ensino Fundamental. Quando se tratava da primeira infância, a preocupação significativa era o desenvolvimento motor. Portanto, pode-se dizer que a produção da área em relação à Educação Infantil, em perspectivas críticas, é recente.

A produção teórica da EF para a faixa etária de zero a seis anos (agora 0 a 5, com a implementação do Ensino Fundamental de 9 anos) é marcada por poucas pesquisas e estudos. Diante deste contexto, surge a necessidade de construir uma proposta curricular para EF na Educação Infantil, o que é fortalecido, como afirma Soares (2001/2002), pelo fato de a LDB estabelecer a disciplina como componente curricular da Educação Básica que, hoje, engloba a Educação Infantil.

A falta de clareza em relação à EF nesse segmento educacional faz com que, em muitas realidades, as atividades de movimento sejam reduzidas à diversão, à utilização da linguagem corporal como "muleta" para aprendizagem de conteúdos de outras áreas de conhecimento, à concepção de que o movimento deve estar presente para que as crianças "liberem as energias" e se aquietem nos momentos considerados importantes.

Uma proposição que define, claramente, objetivos pedagógicos e conteúdos para a EF na Educação de 0 a 6 anos advém da experiência da Secretaria Municipal de Educação da cidade de Olinda-PE, expressa em texto de Silva (2005). Nessa proposta metodológica afirma-se, com base na teoria sócio-histórica, que o objetivo geral desta disciplina na Educação Infantil é organizar a reflexão pedagógica do educando sobre os temas da cultura corporal, possibilitando o conhecimento das possibilidades de ação corporal, assim como o efeito da ação corporal sobre objetos naturais e sociais, responsabilizar-se pelas próprias ações e compreender a função social das regras. Os temas de ensino são a dança, a ginástica, a capoeira, jogos e brincadeiras. Nesta proposta, o autor busca caracterizar uma EF cujo foco seja a criança, entendida como sujeito inserido no mundo sócio-histórico e cultural humano.

No entanto, com o intuito de evitar algumas generalizações, é importante lembrar que, como assegura Ayoub (2001), a linguagem corporal não é uma "propriedade" da Educação Física, apesar de ser sua especificidade. A linguagem corporal deve ser utilizada em outros momentos educativos, principalmente para evitar que as crianças fiquem grudadas às carteiras escolares como se estivessem sendo moldadas.

Para Soares e colaboradores (1992), através da expressão corporal como linguagem será mediado o processo de sociabilização das crianças na busca da apreensão autônoma e crítica da realidade, através do conhecimento sistematizado, ampliado e aprofundado no âmbito da cultura corporal.

Outro ponto bastante relevante neste contexto seria a questão da especificidade do professor de EF na Educação Infantil, sendo necessário, como salienta Sayão (1999), romper com as barreiras que determinam o que é específico de cada área de conhecimento e abrir espaço para uma atuação integrada dos diferentes profissionais que lidam com as crianças pequenas que, de forma isolada, não conseguem construir um trabalho voltado para as reais necessidades do mundo infantil. O problema não está na atuação dos diversos profissionais na Educação Infantil, mas sim em concepções de trabalho pedagógico que geralmente fragmentam as funções de uns e outros, isolando cada um em seu campo.

Como afirma Ayoub (2001), é necessário não mais se pensar em professoras(es) "generalistas" e "especialistas", mas em professoras(es) de Educação Infantil que irão compartilhar seus diferentes saberes, enquanto docentes, para a criação de projetos educativos com as crianças, valorizando suas experiências e interesses.

Desta forma, a atuação de professores de Educação Física na Educação Infantil só poderá ser considerada um avanço se esses profissionais estiverem participando efetivamente do projeto político-pedagógico da escola. Enquanto ocorrer a fragmentação dos saberes e sua hierarquização, "o fazer pedagógico da Educação Física se reduzirá ao lugar de atividade eminentemente prática, destituída de saberes e possibilidades de reflexão" (DEBORTOLI; LINHALES; VAGO, 2001/2002, p. 98). Assim, percebemos que pensar a EF em uma escola de Educação Infantil não é uma tarefa fácil, mas é possível.

 

CURRÍCULO E FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE EDUCAÇÃO FÍSICA PARA ATUAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

O currículo é construção social, e é por esse motivo que determinados conhecimentos fazem parte ou não dele. A sua constituição tenta responder à questão de que modelo de homem se pretende formar para atender a um determinado projeto histórico. É nesse contexto de disputas que se forja o currículo para formar o professor de EF.

O currículo, porém, apesar de ter uma importância bastante relevante, não é o único a versar sobre os conhecimentos necessários à prática educativa. O fazer docente, conforme é apontado por Brzezinski (2002), envolve o ato de interrogar o real, pensar a experiência, compreendê-la para buscar sua gênese e sentido. Com base nessa colocação, a autora define as características/saberes essenciais necessários ao ato de ensinar, que são: conhecimentos específicos que o diferenciam de outros grupos profissionais, o que significa ter a docência como base de formação. Além de exercer a profissão em tempo integral, constituir associações de classe,ter um código de ética e um conjunto de conhecimentos e técnicas de instrumentalização docente.

Como qualquer outra licenciatura ou formação universitária, a formação em EF possui seus dilemas, principalmente curriculares. Como afirmam Taffarel e colaboradores (2006), as principais dificuldades são a inconsistente base teórica; dicotomia teoria-prática; currículos extensivos e desportivizados; falta de articulação entre pesquisa-extensão; teorias de conhecimento voltadaspara atender o mercado.

Sendo assim, Andrade Filho (2001) salienta que a história da formação de professores de EF no Brasil pode ser organizada em quatro fases: a primeira, marcada pela criação da ENEFD (Escola Nacional de Educação Física e Desportos), atual UFRJ, que funcionou com um currículo padrão, responsável pela formação dos primeiros profissionais civis em substituição ao modelo médico-militar; a segunda surgiu com a implantação do Currículo Mínimo em 1969, marcado pelo conflito entre uma visão esportivizante e outra pedagógico-educacional; a terceira referiu-se ao momento em que vigorou o currículo por Áreas de Conhecimento; e a quarta e atual fase do estabelecimento de Cursos de Graduação, de acordo com as novas Diretrizes Curriculares, determinadas pelo CNE/MEC sob pressão do mercado capitalista.

Tais Diretrizes são consideradas por Taffarel et al.(2006a) como um retrocesso histórico que desvaloriza os professores de EF, dividindo-os entre licenciados e graduados, além de se basear numa formação para o mercado de trabalho, e não para o mundo do trabalho. Nesse sentido, caminha-se na contramão de um projeto histórico contra-hegemônico e emancipador, colocando o professor, mais uma vez, como mero executor de tarefas, e não como intelectual capaz de refletir sobre sua própria prática.

Além disso, Taffarel e Santos Júnior (2005) destacam que o documento tem o desenvolvimento de competências como ponto central. Para estes autores e para Taffarel et al. (2006a), a formação de professores baseada nesta lógica assume papel estratégico para o capital, atendendo e reproduzindo as suas necessidades. Em contraponto, destaca-se a importância de uma perspectiva baseada na formação omnilateral, orientando a produção com base nas necessidades vitais humanas.

Nota-se, até aqui, que existe uma indefinição no processo de formação do professor de EF, tendo como problemas centrais a questão da legitimidade e do objeto de estudo.

Este contexto torna ainda mais complexo o debate sobre os subsídios na formação inicial em EF para o trabalho na Educação Infantil, pois concordamos com Barbosa (2001/2002), quando afirma que para atuar em tal segmento da Educação Básica, os professores, inclusive os de EF, precisam abandonar a ideia de que na Educação Infantil a criança deve ser o centro das propostas educativas, pois acabam por considerar apenas suas necessidades de desenvolvimento, afinal, os projetos de educação se atrelam a projetos políticos mais globais, e não apenas a um projeto educacional específico.

Além disso, na prática docente na Educação Infantil é necessário observar que as aprendizagens são fundamentais e necessárias para o desenvolvimento infantil; desligar-se das perspectivas que, historicamente, provocaram um desligamento entre o aspecto da formação e profissionalização e o da atuação no campo, determinando um agir sem por quê; deixar de ressaltar apenas o aspecto prático no processo de educação da criança, evitando a defesa do brincar como algo imanente da infância e como mera atividade sem história, retirando-lhe todo o caráter dialógico; pensar na sua carreira, já que historicamente não se investiu na profissionalização dos educadores infantis; cuidar para não aceitar o conhecimento em "fatias", dividindo especialidades (linguagem, movimento, emoções, raciocínio...) e evitando, assim, disputas hegemônicas por algo que só pode ser assumido na totalidade; e, por fim, diante de uma proposta didático-pedagógica que se oriente em uma perspectiva dialética sobre aprendizagem e desenvolvimento infantil, os professores não podem tomar como "complementares" os aspectos gestuais, corporais, estéticos e emocionais das crianças.

 

OS CAMINHOS DA PESQUISA

Este é um estudo de natureza qualitativa, que teve como opção teórico-metodológica o marxismo, pela sua marca de totalidade. Porém, o princípio da totalidade "não é sinônimo de fechamentos, de certezas absolutas e de verdades estabelecidas" (MINAYO, 2007, p. 115). Entendemos o marxismo como uma teoria que tem uma concepção de homem e de história baseada na práxis.

Nesse sentido, a forma de lidar com os fenômenos busca uma análise crítica do contexto das relações sociais (realidade) no modelo de produção vigente. Sendo assim,

[...] é esse caráter de abrangência, que tenta de uma perspectiva histórica, cercar o objeto de conhecimento por meio da compreensão de todas as suas mediações e correlações, constituindo a riqueza, a novidade e a propriedade da dialética marxista (MINAYO, 2007, p. 107).

O método dialético parte do princípio de que "para conhecer realmente um objeto é preciso estudá-lo em todos os seus aspectos, em todas as suas relações, e todas as suas conexões" (GIL, 1995, p. 32).

O espaço de pesquisa foi uma universidade estadual baiana, localizada no semi-árido do Estado da Bahia. A IES possui 22 cursos de graduação, sendo que a maioria de formação de professores, pois a própria instituição nasceu para atender à necessidade de formação docente no interior do Estado. Na totalidade, a IES atende 6.457 alunos em cursos de graduação e no curso de Educação Física havia, no período da pesquisa, 284 alunos matriculados.

Tratou-se de uma pesquisa documental, que, segundo Gil (1995), assemelha-se muito à pesquisa bibliográfica, mas buscando documentos que ainda não foram submetidos a uma análise sistemática. Por conta disto, além da autorização de liberação dos documentos pelo Colegiado do curso pesquisado, não foi necessário submeter o projeto de pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa da referida universidade, visto não se tratar de pesquisa direta com seres humanos.

Nesta pesquisa, na coleta de dados, foi feita a análise documental do projeto do curso de Licenciatura em Educação Física e os planos de curso das disciplinas oferecidas, tendo como critério para análise a possibilidade de relação do componente curricular com o contexto escolar, e com os aspectos relativos ao trabalho do professor em geral e do professor de Educação Física em particular, com a dimensão do desenvolvimento e da aprendizagem humana no segmento da Educação Infantil. Portanto, foram solicitados para análise os planos de curso das seguintes disciplinas: Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem, Análise Histórica da Educação Física/Esporte e Lazer, Prática Curricular I, Didática, Prática Curricular II, Metodologia do Ensino da Educação Física, Prática Curricular III, Desenvolvimento e Aprendizagem Motora, Prática Curricular IV, Estágio Curricular I e Estágio Curricular II.

Os dados da pesquisa foram analisados através da Análise de Conteúdo, por ser "a expressão mais comumente usada para representar o tratamento dos dados de uma pesquisa qualitativa" (MINAYO, 2007, p. 303), porque permite elaborar inferências em relação ao que está explícito e subentendido nas mensagens (BARDIN apud MINAYO, 2007).

Entre os tipos de Análise de Conteúdo, optamos por utilizar a Análise Temática, pois além de ser a mais utilizada, "ela comporta um feixe de relações e pode ser graficamente apresentada através de uma palavra, de uma frase, de um resumo" (MINAYO, 2007, p. 315).

Procedemos à análise trabalhando com três categorias, que foram: concepção de "ser professor", expressa no projeto do curso; campos de atuação do professor de EF; características do trabalho do professor de EF.

 

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Durante a coleta e análise dos dados desta pesquisa fizemos a opção de trabalhar com a primeira versão do Projeto de Reforma do Currículo do Curso de Educação Física, por ser a que está regendo as atividades do curso. Vale ressaltar que tal projeto está pautado nas Resoluções CNE/CP 01 e 02, de 2002, e na Resolução CNE/CES 07, de 2004.

Ao utilizar as três categorias já citadas anteriormente como critério de análise dos dados, foi possível notar que apareceram algumas proposições em relação à concepção de "ser professor", sendo que a citada o maior número de vezes é a concepção de que o docente é sujeito de sua prática, como fica explícito no seguinte trecho: "isto é, um sujeito que assume sua prática a partir dos significados que ele mesmo lhe dá, um sujeito que possui conhecimento e um saber-fazer proveniente de sua própria atividade e a partir dos quais ele a estrutura e a orienta" (UNIVERSIDADE, p. 15).

Percebe-se que a concepção de "ser professor",defendida pelo documento, é de um ser que possui todos os conhecimentos essenciais ao trabalho pedagógico. É preciso reconhecer, no entanto, três aspectos: 1) a formação inicial não dá conta de todos os conhecimentos, pois a história de vida, a formação continuada e as experiências profissionais influenciam o "ser professor", conforme posto por Brzezinski (2002); 2) no projeto, o professor é visto como responsável por organizar o conhecimento que lhe é passado ao longo da formação, para contribuir com a formação humana de outros sujeitos, além de um profissional generalista e pesquisador, como fica claro no trecho "formação do educador, como para o pesquisador e o profissional generalista" (UNIVERSIDADE, 2008, p. 21). Ainda no diálogo com Brzezinski (2002), como a formação inicial não tem como dar conta de todos os aspectos necessários ao fazer docente, entendemos que isto que aumenta a possibilidade de uma "esquizofrenia pedagógica", ou seja, falar, mas não fazer; 3) não nos debruçaremos sobre tal aspecto, pois se tratou de uma pesquisa documental.

No que diz respeito ao campo de atuação do professor de Educação Física, aparecem escolas de Educação Básica e de Ensino Superior, o campo do lazer e recreação, atenção básica à saúde e fitness, entre outros. No entanto, o que aparece com maior frequência são as escolas. Em relação a esses espaços, o projeto analisado traz: "na área de educação, o aluno terá condições de atuar tanto na Educação Básica como na Educação Superior" (BAHIA, 2008, p.16); "escola, clubes, academias, condomínios, acompanhamentos individualizados, hotéis, comunidades, ONGs, etc" (UNIVERSIDADE, 2008, p. 17); "nas diferentes escolas, bem como, nos ambientes não escolares, como academia, clube e comunidades de uma forma geral" (UNIVERSIDADE, 2008, p. 9).

O fato de considerar as escolas como principal campo de intervenção do professor de EF é um aspecto relevante para esta pesquisa, pois acreditamos que a EF, enquanto área de conhecimento,tem a prática pedagógica como característica essencial, além de que se reconhece toda a Educação Básica como campo de atuação, ou seja, apesar do Projeto do Curso não citar diretamente a Educação Infantil, há o reconhecimento de que os professores de EF formados pela universidade investigada podem se inserir nessa ambiência.

Apesar de uma frequência menos significativa, o documento ressalta ainda o campo da recreação e do lazer como campo de atuação. Atualmente, os debates sobre o lazer no campo da EF são bastante vultosos, já que a nossa Constituição reconhece-o como um direito social. Todavia, quando se fala em recreação, remetemo-nos ao tempo em que a EF, principalmente destinada às crianças, era baseada no objetivo da recreação apenas, tendo como referência a psicomotricidade. Conforme discutido no referencial teórico desta pesquisa, isto pode ser reflexo da produção teórica ainda reduzida sobre o fazer pedagógico com a primeira infância, e da consequente dificuldade de a EF se legitimar como componente curricular nas escolas infantis por falta de clareza em relação a seus objetivos (SOARES, 2001/2002).

Em relação às características do trabalho do professor de EF, merecem destaque as ocorrências mais citadas, por serem essenciais para o trabalho docente no primeiro segmento da Educação Básica, segundo Barbosa (2001/2002). São elas: compreender de forma ampla (economia, política, questões socioculturais) a realidade, sobre o que o documento analisado afirma: "Compreender a realidade econômica, política e sócio-cultural brasileira, no sentido de situar a sua ação educativa de forma contextualizada" (UNIVERSIDADE, 2008, p. 17); ser um sujeito pesquisador, em relação ao que o documento coloca: "Produzir, socializar e estimular a produção de conhecimentos científicos e tecnológicos na área da Educação Física" (UNIVERSIDADE, 2008, p. 18); trabalhar de maneira coletiva, sobre o que o projeto analisado diz: "O trabalho coletivo dos professores também é condição indispensável para que as atividades de sala de aula sejam devidamente planejadas e avaliadas, tendo em vista a direção comum que se pretende imprimir ao processo de ensino-aprendizagem" (UNIVERSIDADE, 2008, p.14); e refletir sobre o fazer docente, sobre o que se afirma: "é fundamental que os docentes reflitam e explicitem a intencionalidade de sua ação" (UNIVERSIDADE, 2008, p. 12).

Kramer (2003) também enfatiza a necessidade de os professores que lidam com a infância, estudarem criticamente as teorias que auxiliam na compreensão e problematização da prática, o que nos remete a um docente pesquisador. Todavia, essa questão da pesquisa é bastante complexa, pois ao se falar neste assunto é preciso considerar as políticas de fomento à pesquisa nas universidades brasileiras, o que não é nosso objeto de estudo. E, ainda, que quando se fala em professor pesquisador não se pode reduzir a pesquisa a um instrumento docente, desconsiderando que o ato de pesquisar por si envolve conhecimentos específicos.

A respeito do trabalho coletivo, Ayoub (2001) afirma que é necessário se pensar em professoras(es) de Educação Infantil que irão compartilhar conhecimentos para a criação de projetos educativos com as crianças, valorizando suas experiências e interesses, admitindo uma Educação Infantil onde os profissionais de diversas áreas de formação atuem em parceria na educação e cuidado das crianças. Esse é, inclusive, um dos aspectos considerados pela autora para afirmar que se deve pensar num professor da Educação Infantil sem se pensar na fragmentação em áreas de conhecimento.

Ainda em relação à categoria sobre as características do trabalho do professor de EF, embora em menor frequência, algumas são baseadas na perspectiva do desenvolvimento de competências. Entre elas, destaca-se a competência técnica, a tomada de decisões e o domínio de conteúdo de áreas correlatas.

O modelo das competências é considerado, por pesquisadores como Taffarel et al. (2006b), uma estratégia para a formação de professores numa perspectiva neotecnicista, voltada para as necessidades e interesses do mercado de trabalho. Essa é, portanto, uma das vias de concretização de esvaziamento e proletarização do trabalho docente.

Outro ponto que merece destaque é a falta de clareza com relação à identidade do profissional de EF e ao objeto a ser estudado nos cursos de formação. No documento analisado, o professor de EF é visto como aquele que tematiza a cultura corporal de movimento e, em outras ocasiões, o objeto de estudo da EF aparece como cultura corporal. Isto está explicitado nos trechos: "nos diferentes espaços/contextos próprias da cultura corporal de movimento" (UNIVERSIDADE, 2008, p.16); e, "tematiza os elementos da Cultura Corporal – jogo, esporte, dança, luta, ginástica, etc." (UNIVERSIDADE, 2008, p. 12).

Com base nas contradições até então explicitadas no projeto, podemos inferir que os conflitos que envolvem a implantação das Novas Diretrizes Curriculares e o próprio objeto da EF estão postos no projeto do curso em análise.

No segundo momento da coleta de dados, selecionamos os planos de curso das disciplinas oferecidas, com base no critério anteriormente descrito. Portanto, esses documentos foram solicitados ao Colegiado do Curso via ofício e, em seguida, os mesmos foram submetidos à análise, a partir do questionamento sobre a relação do que se apresentava planejado com a Educação de modo geral e, em particular, com a Educação Infantil.

Foi possível notar que muitas disciplinas propõem discutir aspectos importantes no âmbito da Educação e especificamente da Educação Infantil, como as teorias educacionais e a dimensão da aprendizagem e do desenvolvimento, e os principais autores que os discutem. Inclusive encontramos planos de curso praticamente iguais (no sentido literal), como foi o caso das disciplinas Prática Curricular III e Estágio Curricular II.

São objetos de debate, de acordo com os planejamentos, as ações essenciais ao trabalho docente, como a organização do trabalho pedagógico, elaboração de planos de curso, de unidade e de aula, estratégias para superar os desafios impostos à prática pedagógica, práxis, assim como métodos e maneiras de avaliar. Além disso, aparecem temas que dizem respeito à realidade do professor no âmbito escolar. São marcantes questões relativas à compreensão das relações sociedade-educação, o entendimento sobre Projeto Histórico, Teoria Educacional e Teoria Pedagógica. Entendemos que esses aspectos auxiliam o professor a aproximar os conhecimentos específicos e pedagógicos da totalidade das relações sociais, políticas e culturais, atuando como alguém que contribui para a transformação da realidade, o que, para Brzezinski (2002), consiste em uma das particularidades do trabalho docente.

Certamente, considerando as discussões que embasam esta pesquisa, tais conhecimentos são significativos para o professor atuar na escola e na Educação Infantil especificamente, pois na história deste segmento, a falta de formação ou a sua precariedade teórica são uma marca. Todavia, foi encontrada sobreposição de conteúdos e métodos, pois muitas disciplinas propõem questões que já foram trabalhadas em outros componentes curriculares, como as abordagens da EF e a elaboração e execução de aulas, projetos e oficinas voltados para EF escolar. Também consideramos sobreposição quando encontramos planos de curso iguais de componentes curriculares diferentes, como dito anteriormente. Ou seja, na mesma medida que essas temáticas possibilitam uma formação aprofundada, que permite pensar a Educação Infantil como campo de intervenção, vários embates e dilemas que envolvem a inserção da EF e a sua presença no segmento da Educação Infantil são deixados de lado, enquanto conhecimentos que os acadêmicos já acumularam durante o curso são retomados.

Em relação à especificidade da Educação Infantil, somente três disciplinas citam-na especificamente. Em um dos casos, tem-se um viés retrógrado, aproximando a Educação Infantil dos seus momentos higienistas e compensatórios, o que acontece no componente Desenvolvimento e Aprendizagem Motora. As outras duas colocações possibilitam conhecer essa realidade com a observação e a regência, que são o Estágio Curricular I e o Estágio Curricular II. Porém, muitos aspectos específicos da Educação da primeira infância que têm sido discutidos no âmbito acadêmico-científico e nas produções da própria EF, são deixados de lado, nessas mesmas disciplinas, por conta da já apresentada sobreposição de conteúdos nos diferentes componentes curriculares do curso de EF da IES pesquisada.

Além disso, algumas disciplinas trazem em seus planos aspectos controversos, como a centralidade nas fases de desenvolvimento humano, na psicomotricidade e no desenvolvimento motor. Estas são características que divergem de uma perspectiva crítica de educação, cabendo-nos perguntar em que medida a existência de um componente curricular, que tem a psicomotricidade como foco, não são resquícios das raízes tradicionais, tecnicistas e conservadoras da história da Educação e da EF brasileira. Tais aspectos contradizem a perspectiva crítica que o projeto do curso indica seguir e, também, com a temática que fora central nos outros componentes curriculares analisados: a relação escola-sociedade-projeto histórico.

É preciso considerar, não obstante, que as contradições apontadas são resultado do próprio processo conflituoso em torno da construção das Diretrizes Curriculares e que, do ponto de vista da dialética, as contradições são possibilidades para refletir e transformar a realidade.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Para efeito de conclusão deste texto, é necessário esclarecermos que as considerações aqui tecidas não esgotam as possibilidades de pesquisa e de perspectivas de intervenção do campo da EF na Educação da primeira infância, porque estudamos a dimensão da formação inicial, em somente um curso de formação, e sem analisar propriamente as práticas formativas. São necessárias, portanto, muitas outras pesquisas, tanto na dimensão da formação quanto em relação aos outros aspectos envolvidos na prática docente.

No que se refere ao curso pesquisado, encontramos uma formação destinada à atuação nos diversos campos de intervenção da EF, com uma ênfase maior nas escolas, numa perspectiva crítica e emancipadora. Todavia, os planos de curso de algumas disciplinas entram em confronto quanto à perspectiva de educação defendida pelo projeto do curso.

Além disso, no que se refere aos planos de curso condizentes com a perspectiva crítica do Projeto do Curso, foi possível observar a sobreposição de conteúdos. Apesar de serem conteúdos significativos na formação de professores, essas questões deveriam levar a outros debates sobre o campo educacional, inclusive específicos da Educação Infantil, que poderiam ser mais aprofundados se o planejamento das disciplinas se concretizasse de modo articulado.

As discussões gerais em relação à Educação e à EF, no curso de Licenciatura em Educação Física da IES pesquisada, tanto no Projeto do Curso quanto nos planejamentos das disciplinas, tem centralidade. Nesse sentido, quando se leva em consideração que o professor de Educação Infantil deve ter ampla consciência dos debates e embates no campo da história da Educação, das teorias pedagógicas e da política educacional, pode-se afirmar que tal currículo possibilita uma ação consciente do futuro professor na Educação Infantil.

Todavia, é preciso considerar que este segmento educacional tem uma história que lhe é própria, tem características marcantes que se refletem nas propostas curriculares para a Educação de 0 a 6 anos e em aspectos peculiares da atuação do professor nesse segmento, que poderiam ter centralidade, pelo menos nas disciplinas que citam a Educação Infantil enquanto campo de atuação.

Diante deste contexto, é possível apontar possibilidades para a reorganização do currículo do curso em questão, no sentido de atender aos pré-requisitos entendidos por Barbosa (2001/2002) como essenciais ao trabalho com crianças, especialmente no que se refere à necessidade de possibilitar ao professor saber interagir, de forma dialética, com a criança e os conhecimentos específicos da Educação Infantil e refletir sobre o fazer docente, compreendendo as contradições, peculiaridades e possibilidades pertinentes à primeira etapa da Educação Básica.

Diante dessas considerações, entende-se que esta pesquisa tem limites. O principal deles tem relação com o próprio tipo de estudo, pois o estudo documental não possibilita analisar como, concretamente, o que está planejado acontece no contato com a realidade. Então, novas questões se colocam: em que perspectiva dá-se a observação e a regência na Educação Infantil, nas disciplinas que a mencionam? De fato, acontece a observação? O que se faz com o que é observado? O que o acadêmico do curso de EF conhece a respeito da Educação de 0 a 6 anos? Por isso, podem ser realizadas novas pesquisas para verificar se, efetivamente, a concretização dos planos de curso prepara para a atuação do futuro professor de EF na Educação Infantil, e pode-se analisar não só uma universidade, mas as outras instituições, públicas e particulares, que possuem o referido curso.

 

REFERÊNCIAS

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