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A Recreação no Contexto da Educação Física





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1. Apresentação

Este artigo é um relato da pesquisa de mesmo título, apresentada ao Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo como requisito parcial à conclusão do Curso de Licenciatura Plena em Educação Física, que instituiu-se na difi-culdade encontrada em estabelecer diálogo com outros profissionais da área, por haver uma diversidade de entendimentos, muitas vezes divergentes, do que vem a ser recrea-ção. A fim de traçar análises acerca dessa discussão, o estudo investigou as concepções de recreação apontadas nas produções discursivas que apresentaram discussões acerca do tema, presentes na Revista Brasileira de Ciências do Esporte (1979-2001), sendo nor-teado pela seguinte questão de estudo: quais concepções de recreação se fazem presentes nas produções da Revista Brasileira de Ciências do Esporte?


Tendo sido uma pesquisa de cunho bibliográfico, os dados analisados foram buscados no periódico "Revista Brasileira de Ciências do Esporte", acompanhando a segunda diretriz proposta por Catani e Souza (1999), que se configura pelo estudo específico e 'interno' ao próprio periódico e sua produção, sendo possível tomá-los como núcleos informativos, pois suas características explicitam modos de construir e divulgar o dis-curso legítimo sobre as questões de ensino e o conjunto de prescrições ou recomenda-ções sobre formas ideais de realizar o trabalho docente. Ou seja, inquiri na produção da Revista Brasileira de Ciências do Esporte, artigos que abordassem em suas discussões a temática recreação, de modo a apreender quais concepções manifestaram-se nessas pro-duções, buscando assim responder à questão da pesquisa. O corpus documental do estu-do foi constituído por sete artigos da Revista Brasileira de Ciências do Esporte (1979-2001), que trataram especificamente sobre a temática da recreação, selecionados a partir dos dados do Catálogo de Periódicos de Educação Física (1930 - 2000) e, ainda, em exemplares da Revista publicados no ano de 2001. A escolha por este periódico ocorreu por ser um importante instrumento de veiculação da produção do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), permitindo, dessa maneira, investigar a produção científi-ca de pesquisadores da área, que compõe a comunidade científica da Educação Física e Esporte no país.

2. O que se entende por recreação?

Como cenário teórico para análise, a pesquisa se valeu de argumentos apontados por Waichman que entende a recreação como "o processo educativo que tende a gerar o surgimento ou o aperfeiçoamento da liberdade no tempo, isto é, o tempo livre" (1997, p. 37). Tempo livre, aqui, não compreendido como "livre de obrigações", e sequer é opos-to ao trabalho ou ao tempo deste. Tempo livre entendido como aquele no qual o homem age por sua própria necessidade autocriada - autocondicionamento, liberdade, necessi-dade interior - em que o heterocondicionamento (o oposto do autocondicionamento, necessidade exterior) é mínimo e o sujeito coloca (ou impõe-se) as condições para cada atividade" (WAICHMAN, 1997).

Partindo da idéia de que a natureza humana é condicionada pelo meio social, Waichman (1997, p. 81) nos aponta a concepção de tempo social:

"[...] dá-se no concreto e no cotidiano, em um contínuo caracterizado pelo que é mais necessário (condicionamento exterior), num extremo, e a liberdade (condicionamento interior, obrigação interior), no outro. Entre um e outro extremo não existem compartimentos estanques, mas uma infinidade de posições de mais a menos auto ou heterocondicionamentos."

Assim sendo, a liberdade e o condicionamento seriam dependentes um do outro, e o ho-mem, só será livre quando for construtor de suas próprias condições (WAICHMAN, 1997). Para isso, precisa de criticidade para discernir o que é necessidade interior (auto-condicionamento - liberdade) e o que é necessidade exterior (heterocondicionada - obrigação), e a partir daí, superar as condições exteriores, passando a ser o maior res-ponsável de suas condições. Nesse contexto, a recreação apresenta atividades com obje-tivos de experimentar novas atitudes/ posturas, para que o indivíduo se perceba um su-jeito histórico, que pode ser mais heterocondicionado ou mais autocondicionado. À ne-cessidade de liberar-nos de parte do tempo heterocondicionado surge a "liberdade de", que "ocupamos com atividades de nossa escolha, autocondicionadamente" (WAICHMAN, 1997, p. 96). Segundo Fromm, (apud WAICHMAN, 1997, p. 129), "e-xiste o par dialético 'liberdade de' e 'liberdade para', ou seja, devo estar liberado de al-guma coisa, para assim poder 'liberar-me para algo' ". A "liberdade de" é, então, uma contrafunção - segundo Munné (apud WAICHMAN, 1997) contrafunção seria a com-pensação de uma alteração nos sistemas, sejam eles sociais ou pessoais, diminuindo os efeitos desta alteração - do tempo heterocondicionado (de obrigações) e ocorre num tempo liberador. É essa contrafunção que nos abre a possibilidade de ter acesso à "liber-dade para", alcançando o tempo livre, liberdade no tempo (WAICHMAN, 1997). Nessa conjuntura, a recreação é o agente fomentador da necessidade, no indivíduo, de trans-formação da liberdade de em liberdade para, e do tempo liberador em tempo livre. O tempo livre é, portanto, "[...] uma possibilidade, um valor a ser gerado, uma práxis a ser exercida" (WAICHMAN,1997, p. 37), ressaltando que, toda conduta autocondicionada decorre de um heterocondicionamento prévio (WAICHMAN, 1997). Então, "[...] o tem-po livre é livre quando contempla ambas as 'partes' da liberdade em seu exercício con-creto" (WAICHMAN, 1997, p. 129), e "liberar-me para" envolve um processo de aprendizagem. Este processo "[...] implica a existência de algum agente impulsionador, alguém que diga, sugira, que motive o(s) modo(s) de liberar o 'tempo para' de acordo com o modelo educativo que o oriente". Assim, o recreólogo "[...] está comprometido, já que sua tarefa consiste em que os recreandos gerem valores que lhes permitam participar da realidade de um modo mais coerente com seu 'ser humano' " (WAICHMAN, 1997, p. 129).

Ao trilhar a definição do autor, vejo necessária a contextualização desta. Waichman entende ainda que a recreação manifesta-se em instituições, num 'modelo organizativo', [...] que implicam a formulação de objetivos educativos e uma determinada continui-dade temporal" (WAICHMAN, 1997, p. 130); "tem como critério fundamental de tra-balho a busca do desenvolvimento da participação efetiva, consciente e comprometida, mediante organizações autogestoras (autocondicionamento)" (WAICHMAN, 1997, p. 131). A recreação utiliza-se do 'tempo liberado de' e conduz à geração do "tempo livre para", pretendendo conceber aprendizagens para não apenas consumir o tempo livre, mas fazer uso positivo e criativo desse tempo.

"A organização e a realização das ativi-dades enfatizam mais o grupal do que o individual, ratificando assim que o homem é um ser social, cooperativo com os outros e não exclusivamente competitivo. Como va-lores a desenvolver, propõe as atitudes de auxílio mútuo e solidárias diante da ênfase do individualismo típico do entretenimento" (WAICHMAN, 1997, p. 132).

Ainda, com-forme delineia Waichman (1997), a recreação não se faz presente na educação formal, ela é, segundo ele, parte da educação não-formal, e a característica crucial em que Waichman se baseia para pretender a recreação nesta, é a de não obrigatoriedade, pois o indivíduo busca a educação não-formal voluntariamente. No entanto, convém lembrar que Waichman (1997, p. 141) compreende que: "A essência da recreação não é apenas o tempo em que ela se manifesta, mas também as características educativas que se lhe outorgam. O participante gerará aprendizagens para o uso desse tempo liberado fora das estruturas do sistema recreativo."

Sobre isso, penso ser importante esclarecer que não comungo completamente desse em-tendimento do autor, visto acreditar que o "lugar" da recreação não seja apenas o sistema não-formal. Compreendo que a recreação possa contextualizar-se também no sistema formal de ensino, já que segundo Waichman (1997): o crucial da recreação são as características educativas nela colocadas; para se alcançar o tempo livre, sempre partimos de um tempo heterocondicinado; na recreação, se educa para fora do sistema recreativo; e, por último, a essência da recreação não é o tempo em que se manifesta. Assim estou defendendo, a partir dessa leitura acerca da discussão de Waichman (1997), que, o docente da educação formal, que busca a criticidade do recreando centrando-se no modelo de homem como protagonista de sua história, pode educar para o tempo livre, no tempo heterocondicionado (da escola), pois é deste último que sempre partimos para alcançar o tempo plenamente livre.

3. Considerações finais

Após a análise do corpus documental, conforme os objetivos do estudo, foi possível identificar que, nos artigos estudados, há forte vinculação da recreação ao jogo/ brincadeiras, em que se constitui uma concepção de recreação enquanto atividade lúdi-ca, no que tange a utilização de jogos e de brincadeiras, na qual há uma preocupação com o aspecto da criticidade e interação social, estando o desenvolvimento da consciência social, crítica bastante presente nessas considerações acerca de recreação.

Há apontamentos nos artigos analisados, acerca de um agente de intervenção, que direcione a atividade numa perspectiva mais crítica e menos alienante (compensadora). Considerando isso, Barreto (1992) aponta que, se a recreação for utilizada de maneira a estimular a criticidade, pode ser uma forma de emancipação do homem, já para Pinto (1992), utilizada dessa maneira, a recreação pode significar possibilidade de conquista da liberdade. Permeiam também às concepções, colocações da existência da recreação ligada diretamente à vivência do lúdico, quer dizer, apresentam-se concepções que circundam a recreação como atividade lúdica prazerosa e gratuita, ou seja, não obrigatória. Essa não-obrigação, para Gomes (1999), é fator facilitador da aprendizagem, tornando os participantes mais aptos por não serem cobrados, auxiliando na realização de tarefas. Essa mesma "não-obrigação", apresenta-se na forma de sentimento de liberdade existente nas práticas denominadas recreação.

As discussões apresentaram ainda, colocações acerca da educação para o lazer, sendo a recreação um instrumento para essa educação. Nas discussões em que surgiram a educa-ção para o lazer, uma autora (Barreto, 1992) acredita ser a recreação instrumento desta, fora da escola, outro autor (Gomes, 1999) considera ser a escola o espaço apropriado para essa educação, e uma terceira (Pinto, 1992) considera apenas que a recreação se relaciona a ações institucionalizadas. Quanto ao espaço em que ocorre a recreação, a-penas Barreto (1992) negou a presença desta na escola, entre os outros autores, nenhum exclui qualquer tipo de espaço, apesar de uns se referirem a um espaço específico.

As publicações estudadas, em sua maioria, mostraram que a recreação pode ser usada tanto para manipulação, quanto para conscientização e criticidade. No entanto percebi algumas contradições, como por exemplo, salientar a criticidade e permitir a manuten-ção do status quo, preocupando-se não com a educação, mas com a atividade em si do jogo ou da brincadeira, principalmente ao defender que o jogo é educativo per se. Que-ro salientar por isso, que Waichman (1997) defende uma perspectiva pedagógica, que percebe a recreação como educação no e do/para o tempo livre, e que pretende gerar um processo de liberação no indivíduo em todo o seu tempo. No entanto, o autor aponta a existência de uma outra perspectiva, a didática que preocupa-se em ocupar o tempo, em entreter o participante através das atividades. Quer dizer, o agente de intervenção é a peça principal para que a recreação sirva a consientização ou alienação do participante. Diante disso, devemos nos preocupar os objetivos da recreação que pretendemos, já que, de acordo com os objetivos traçados, ela pode servir a diferentes interesses. Des-taco, então, deve-se ter objetivos claros e bem fundamentados, para que não se perca de vista a intenção de criticidade desta que denominamos "educação no e do/para o tempo livre".

Finalmente, identifiquei uma proximidade à definição por mim abraçada, no entanto, alguns detalhes devem ser revistos, principalmente quanto a existência de objetivos, que não os psicomotores, alicerçando as atividades, para que seja percebida a diferença entre dar uma brincadeira, e trabalhar com recreação.

Referências bibliográficas

  • Bardin, Lourence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
  • Barreto, Margarita. A brincadeira tradicional como opção de recreação orientada. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 12, n. 1, 2 e 3, p. 267-270, [s. m.] 1992.
  • Bramante, Antonio Carlos. Esporte, tempo livre, recreação e lazer na América Latina. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 11, n. 2, p. 114-117, jan. 1990.
  • Catani Denice Bárbara; SOUSA, Cyntia Pereira de: Catálogo da imprensa periódica educacional paulista (1890 - 1999): um instrumento de pesquisa. In: Catani Denice Bárbara; SOUSA, Cyntia Pereira de: Imprensa periódica educacional paulista (1890 - 1999). São Paulo: Plêiade, 1999.
  • Ferreira Neto, Amarílo et al. Catálogo de periódicos de Educação Física e Esporte (1930-2000). Vitória: Proteoria, 2002.
  • Gomes, Luiz André dos Santos. As particularidades no trato da recreação no sentido de resgatar a vivência do mundo infantil junto as crianças que fazem tratamento de câncer. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 704-710, set. 1999.
  • Pimentel, Rafaela Garcia. Universo lúdico no hospital: perspectivas da recreação dentro do ambiente hospitalar infantil com base no processo sócio histórico-cultural. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 761-770, set. 1999.
  • Pinto, Leila Mirtes Santos de Magalhães. Uma leitura do pensamento de Paulo Freire sobre recreação/lazer. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Maringá, v. 14, n. 2, p. 85-90, jan. 1993.
  • __________. A recriação/lazer no "jogo" da educação física e dos esportes. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 12, n. 1, 2 e 3, p. 289-293, [s. m.] 1992.
  • Stucchi, Sérgio. As relações do homem com o espaço de circulação da cidade e o significado da função urbana de "recrear". Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v.23, n.1, p. 99-108, set. 2001.
  • Waichman, Pablo. Tempo Livre e Recreação: Um desafio pedagógico. Campinas: Papirus, 1997.

Autora

Por: Juliana Martins e Mendonça


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