Historicamente, a Educação Física esteve às voltas com a dicotomia teoria/prática. De um lado, havia os defensores de que a essência da intervenção profissional é prover experiências de movimento corporal, predominantemente em contextos esportivos e de ginástica. Do outro lado, temos aqueles que vêem como sentido da intervenção profissional a transmissão de conhecimentos produzidos pela área de conhecimento da Educação Física, que alguns autores têm denominado Cinesiologia (Mariz de Oliveira, 1993; Tani, 1996).
Adeptos da primeira posição têm sustentando que a prática do conjunto de atividades físico-motoras, historicamente sistematizadas pelos profissionais, teria um efeito formativo nos alunos. Por exemplo, na prática esportiva ("fairplay") julga-se possível desenvolver aspectos éticos e morais. Já por meio da ginástica, com seus movimentos simétricos, lineares e harmõnicos, esperava-se contribuir para a formação de um jovem individualmente e socialmente responsável. Há um consenso de que essa concepção predominou nos currículos dos cursos de preparação profissional em Educação Física até o final dos anos de 1980 e provavelmente ainda persiste como prática profissional.
Já os adeptos da segunda posição percebem a Educação Física como um corpo de conhecimento produzido sobre um objeto particular (movimento humano, atividade física, exercício, esporte, motricidade, cultura corporal etc.), por meio das diversas disciplinas que compõem a área de conhecimento da educação física, para fins de intervenção profissional.
Na Educação Física Escolar, os reflexos desse segundo posicionamento se fazem sentir. Cada vez mais surgem questionamentos acerca da natureza dessa disciplina escolar. Uma síntese dessa "turbulência" pode ser vista no trabalho de Soares (1996), Ferraz(1996), Bracht(1996), Silva (1996) e Resende e Soares (1996), apresentados no III Seminário de Educação Física Escolar, realizado em 1995, na Escola de Educação Física e Esporte da USP, que teve como tema "Conhecimento e Especificidade". Ao final da 6ª série do Ensino Fundamental II, espera-se que o aluno tenha adquirido conceitos sobre a história do Brasil na disciplina de História, que na matemática, domine fração numérica e em ciências, tenha noções sobre a fauna e a flora, e no conjunto, espera-se que esses e outros conhecimentos permeiem o agir do aluno em seu cotidiano. E na Educação Física? Qual seria o conhecimento a ser adquirido nessa série?
Na prática da Educação Física Escolar observa-se em muitos casos a ausência de propostas claramente definidas e testadas, o que não deixa de ser curioso, uma vez que com a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), número 9.394, de 20 de dezembro de 1996, artigo 26, parágrafo 3, o componente curricular Educação Física deveria estar integrado à proposta pedagógica da escola, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar (Brasil, 1996). Sendo assim, a disciplina Educação Física deveria propiciar à criança e ao jovem, conhecimentos que dizem respeito a esse componente. Entrementes, falta não só consenso como clareza no que se constituiria o conhecimento da Educação Física a ser disseminado nos ciclos do Ensino Fundamental e Médio.
Cabe ao professor de Educação Física a responsabilidade de fazer a transposição didática do conhecimento disponível na área de conhecimento da Educação Física, para torná-lo conhecimento escolar. Seria uma atitude simplista dizer que há uma forma melhor de realizar essa construção, pois existem várias. Mas é sobre essa problemática, a de construção de um corpo de conhecimentos próprios da 'ou' à Educação Física Escolar, que trata o presente trabalho.
Objetivo
O presente estudo tem como objetivo a seleção, sistematização e validação de conhecimentos pedagógicos de natureza declarativa para 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental. Trata-se, portanto, de um trabalho de desenvolvimento e aplicação que foi dividido em três fases.
A primeira fase é relativa à seleção do conhecimento declarativo, aqui entendido como os conhecimentos sobre fatos, descrições e conceitos passíveis de representação linguística (Anderson, 1995). Inicialmente, esses conhecimentos foram eliciados de livros didáticos de Educação Física voltados para o ensino básico de autores como: Davis, Bull, Roscoe & Roscoe (1991), Eshuys, Guest e Lawrence (1990), Kneer (1981) e Mohnsen (2003), onde os textos estão detalhados na metodologia.
Posteriormente, a seleção prévia desses conhecimentos foi submetida à apreciação de 11 docentes, especialistas e pesquisadores da educação física escolar.
Na segunda fase, procurou-se sistematizar o conhecimento declarativo selecionado como relevante para a Educação Física Escolar, ao longo das quatro séries finais do ensino fundamental. A sistematização é entendida como o processo em que um conjunto de princípios (no presente trabalho, relativos aos conceitos) é entrelaçado numa ligação lógica, formando um todo harmõnico.
A terceira fase consistiu na validação da sistematização por série, proposta na fase anterior. A validação consiste de uma avaliação da pertinência da sistematização por série escolar por aqueles que trabalham nas escolas; no caso desse estudo, foram os professores de Educação Física da rede pública estadual de ensino.
Revisão de literatura
No Brasil, nota-se uma certa ausência de iniciativas de desenvolvimento e estruturação dos conhecimentos a serem ensinados na Educação Física Escolar e, quando existem, não está explicitado como esse conhecimento foi elaborado e/ou sistematizado ou, ainda, quais os estudos que investigaram a estruturação proposta. Uma evidência dessa ausência de propostas é a quase que total inexistência de livros didáticos de Educação Física Escolar.
Uma exceção a esse quadro de ausência ao qual nos referimos no parágrafo anterior, foi o livro do professor Hudson Ventura. Na década de 70, no Brasil, o professor Hudson Ventura publicou um livro didático para Educação Física Escolar com o intuito de organizar os conhecimentos relacionados com o componente curricular (Teixeira, 1996). Esse foi um trabalho pioneiro, de fato, adiante de seu tempo, se considerarmos que nessa época, na educação física, apenas começava a discussão sobre a identidade da profissão e da área de conhecimento correlata. Esse trabalho de vanguarda focava as regras das modalidades esportivas e trazia algumas orientações para a prática da atividade física com base nos conhecimentos disponíveis na época. Isso significou um enfoque predominantemente prático e biológico. Em mais de 25 anos pouco se fez em acréscimo à obra do professor Hudson Ventura.
Somente em 1996, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), pelo Ministério da Educação, essa realidade se modificou. Nos PCN foi proposto o desenvolvimento de três blocos de conteúdos ao longo de todo o Ensino Fundamental. São eles: esportes, jogos, lutas e ginásticas; atividades rítmicas e expressivas; conhecimento sobre o corpo, sendo esse último bloco relacionado com alguns conceitos sobre o funcionamento do organismo em termos anatõmicos, fisiológicos, biomecânicos e bioquímicos (Brasil, 1998).
Em 2000, Mauro Mattos e Marcos Garcia Neira, apresentaram uma proposta de construção do conhecimento escolar separado por temas (Mattos & Neira, 2000). A proposta está embasada em um dos objetivos propostos pelos PCN, a formação de um cidadão capaz de desenvolver, administrar e avaliar programas de atividades físicas organizadas em torno de três temas: aptidão física, saúde e qualidade de vida.
A partir da análise as referências bibliográficas utilizadas por professores do Ensino Fundamental II para elaboração dos planos de ensino, Veronezi (2000) buscou identificar qual o conhecimento abordado nas quatro últimas séries do ensino fundamental II. Os resultados apontaram que apenas quatro, dos 26 professores, utilizavam algum tipo de referencial bibliográfico. Esses quatro professores, mesmo declarando um compromisso com o ensino de conteúdos de natureza atitudinal, procedimental e conceitual, demonstravam problemas na clareza, objetividade e sistematização da proposta, mas nem sempre específicos, sistematizados e com uniformidade de objetivos. Com base nesse estudo, apesar da amostra estudada ser bastante reduzida, pode-se sugerir que no caso brasileiro, o livro do professor Hudson continua atual.
Internacionalmente, a produção acerca do tema tem sido mais organizada, tanto na forma de livro didático quanto na forma de propostas oficiais em nível municipal e estadual. Um exemplo muito conhecido na forma de livro didático foi o "Basic Stuff". Esse livro, publicado nos Estados Unidos (Kneer,1981), buscou sintetizar de forma didática, em pequenos livretos, os conhecimentos das subdisciplinas acadêmicas da Educação Física. Esse projeto é sustentado por uma visão de disciplina curricular orientada fortemente pelos conhecimentos produzidos pela disciplina acadêmica correlata, isto é, a Cinesiologia. A publicação foi dividida em dois volumes. O primeiro volume foi apresentado como um livro didático para os alunos, com conceitos a serem desenvolvidos no programa de Educação Física. Os temas, em cada subdisciplina, foram incorporados a seis eixos temáticos: saúde - eu quero me sentir bem; aparência - eu quero parecer bem; metas pessoais - eu quero fazer o meu melhor; psicossocial - eu quero estar com os outros; estético - eu quero me "turbinar", e administração de dificuldades - eu quero sobreviver. Para os professores, foram desenvolvidos livros de apoio didático, a cada faixa etária: primeira infância, segunda infância e adolescência.
Alguns outros livros foram publicados com o objetivo de organizar os conhecimentos para o componente curricular Educação Física, embora enfocando conteúdos semelhantes aos desenvolvidos no "Basic Stuff". Como por exemplo: o que é Educação Física e saúde?; seu corpo; o corpo em movimento; aptidão física e performance; lesões no esporte e sua prevenção; esporte, sociedade e você; saúde e você; saúde e dieta; drogas e sua saúde (Davis et al., 1991; Eshuys, Guest & Lawrence, 1990).
Chepro e Arnold (2000) também adotaram como conteúdos os conceitos provenientes da biomecânica, aprendizagem motora, desenvolvimento motor e fisiologia do exercício. Esses conteúdos foram sugeridos do 6º ao 8º ano dentro dos padrões americanos de escolarização, e que corresponderiam aos ciclos do Ensino Fundamental em nosso país. Um dos objetivos apresentados para o 7º ano, por exemplo, é de selecionar e identificar atividades em horários extra-escolares, com ênfase no desenvolvimento da capacidade cardiovascular.
Um documento que tem servido de referência para os conhecimentos de natureza declarativa presentes nas propostas de programa nos Estados Unidos tem sido a definição do que seja uma pessoa fisicamente educada, produzido em 1992 pela Associação Norte Americana de Educação Física (NASPE). Nesse documento, a referida instituição afirma que um indivíduo que tenha sido objeto de um programa de Educação Física Escolar deveria, ao seu final, ter aprendido as habilidades necessárias para diversas atividades físicas, ser fisicamente condicionado, participar regularmente de um programa de atividade física, conhecer as implicações e benefícios das atividades físicas, valorizar a atividade física e contribuir para um estilo de vida saudável (Chepro & Arnold, 2000). Nesse documento, a natureza declarativa do conhecimento (conceitos) está claramente destacada no seguinte objetivo: "conhece as implicações e benefícios das atividades físicas".
Um ponto a ser destacado nos trabalhos revisados até aqui, refere-se à ausência de propostas ou estudos que se reportem a um modelo teórico acerca da natureza do conhecimento. Assim, os vários tipos de conhecimentos são tratados sem a clareza necessária, gerando confusões e ambiguidades. Um outro ponto se refere ao próprio conceito de conhecimento ou saber escolar. Essas deficiências podem estar dificultando a construção de um consenso acerca dos conhecimentos a serem ensinados no componente curricular da Educação Física.
Natureza do conhecimento
O conhecimento, do ponto de vista cognitivo, pode ser entendido como um sistema de informações abrangendo aspectos específicos e gerais de uma determinada ideia, teoria científica, notícia, prática de vida ou experiência. Essas informações foram processadas pelo indivíduo, isto é, foram coletadas, codificadas, organizadas e armazenadas em consequência de uma experiência. A memória é o nome que damos ao sistema de armazenagem de conhecimentos e que, para tanto, possui funções de codificação e recuperação da informação (Stenberg, 2000). Para ilustrar essa relação, Dantas (2000) utilizou o computador para fazer uma analogia com a memória humana. Assim, as estruturas de memória corresponderiam ao "hardware" ("chips", circuitos integrados, "micro chips", etc.) e a alguns "softwares" básicos (programas) de armazenamento, organização e busca. O conhecimento corresponderia aos arquivos e seus conteúdos. As pessoas recorrem ao conhecimento armazenado para organizar suas ações e produzir novos conhecimentos.
Quanto a sua natureza, o conhecimento pode ser categorizado em diferentes formas ou tipos. Ryle (1969) propõs uma divisão em dois tipos de conhecimento: o saber fazer e o saber quê. O saber fazer é um saber circunscrito à operação de alguma atividade e nada tem a ver com a explicação de como se dá uma certa atividade; é aprendido mediante a prática. O saber que se refere ao conhecimento que se tem sobre um determinado objeto, seja ele um fato, princípio ou uma lei científica; passível de ser declarado por intermédio da linguagem.
Numa outra classificação, Anderson (1995) divide o conhecimento em procedimental e declarativo. O conhecimento procedimental refere-se a como executar tarefas. Por exemplo, saber chutar uma bola, saber como andar de bicicleta. Já o conhecimento declarativo pode referir-se a conhecimento sobre fatos, descrições e conceitos, como, por exemplo, conhecer os argumentos que suportam a relação positiva entre atividade física e saúde. Dentro dessa caracterização de conhecimento, Hegenberg (2002) propõe um conhecimento também de natureza declarativa, o saber que, que representa um sistema lógico de raciocínio, geralmente associado a explicação de natureza científica.
Com base nas classificações de conhecimento apresentadas, podemos analisar o saber escolar referente ao componente curricular de Educação Física. Pode ser verificado que, nas últimas décadas, a Educação Física Escolar tem valorizado cada vez mais o conhecimento declarativo no processo de escolarização. Entretanto, vale ressaltar: essa tendência não pode ser acompanhada por uma desvalorização do conhecimento de natureza procedimental. O desenvolvimento da capacidade de executar habilidades motoras implicadas nas diversas manifestações da cultura corporal é um aspecto crítico para o desenvolvimento humano e, portanto, deve ser também privilegiado no processo de escolarização. O que tem sido justificadamente criticado é a posição que vinha sendo adotada dentro do componente curricular, isto é, considerar como conhecimento prototípico da Educação Física Escolar exclusivamente o saber executar habilidades motoras. Em outras palavras, a crítica refere-se à exclusividade do conhecimento procedimental nos programas de Educação Física Escolar.
Assumindo a posição de que deve existir uma relação entre a disciplina curricular da educação física e a área de conhecimento da Educação Física, consideramos que um dos conhecimentos pertinentes a serem abordados na Educação Física escolar é o conhecimento declarativo. Deve-se reconhecer que essa não tem sido a tõnica das propostas curriculares existentes.
O conhecimento declarativo na Educação Física está presente tanto nas dicas essenciais para a execução de uma habilidade motora, no significado sociocultural de uma determinada atividade motora, ou ainda nas orientações sobre o gasto energético a ser despendido num certo exercício físico. Representar uma habilidade simbolicamente, na forma de um conhecimento declarativo, requer um domínio dos conceitos e teorias que representam e explicam os mecanismos e processos envolvidos na execução e aprendizagem de habilidades motoras. Os conceitos são representações simbólicas sobre o corpo em movimento e possibilitam ao aluno uma reflexão e, consequentemente, um maior domínio sobre a atividade que realiza. Por exemplo, ao apropriar-se do conceito frequência cardíaca, o aluno apropria-se de um conhecimento que o permite manipular a intensidade do seu exercício físico de acordo com suas necessidades atuais e futuras; como, por exemplo, melhorar suas funções cardiovasculares, perder peso ou simplesmente usufruir com segurança de uma atividade prazerosa. Os conceitos devem ser selecionados do universo de conhecimentos organizados pela área de conhecimento da Educação Física, mas tendo como critério de seleção aqueles conhecimentos que contribuem diretamente para as finalidades da disciplina escolar. Nessa direção, assumimos a importância de se conhecer as dimensões e implicações biopsicosocioculturais do movimento humano como um dos meios para que o indivíduo adquira autonomia no gerenciamento das suas próprias atividades.
Como já expusemos anteriormente, a inserção de conhecimentos de natureza declarativa no conjunto de conhecimentos escolares que caracterizam o componente curricular da educação física, não implica uma ameaça a sua identidade corporal ou à prática dessa disciplina. Ao contrário, a prática de atividades físicas durante as aulas é enriquecida na medida em que se atrela à atividade um novo significado, dotando-a de novas possibilidades de apropriação por parte dos alunos. A Educação Física Escolar, ao enfocar um conhecimento declarativo, não estará deixando de cumprir seu papel, apenas enriquecerá a sua contribuição para o processo de escolarização.
Apesar de o presente trabalho propor um conjunto de conhecimento de natureza declarativa sistematizado ao longo do ensino fundamental, buscando assim contribuir para uma melhor especificação dos conhecimentos a serem trabalhados na Educação Escolar, a escolha última de quais conhecimentos são importantes para cada programa de educação física não pode estar alheia à realidade da comunidade que está sendo atendida. Assim, cabe ao professor selecionar o que é fundamental os seus alunos conhecerem, dada a sua realidade e os fins estabelecidos.
Como expõe Daólio (em resposta ao questionário que lhe foi enviado como parte da presente investigação)
Todos os temas apresentados podem ser pedagogizados pelo componente curricular da Educação Física, desde que sejam selecionados como conhecimentos a serem adquiridos e apreendidos pelos alunos. Tomar um tema como conhecimento de um componente curricular implica considerá-lo como construção histórica da humanidade, algo que é patrimõnio cultural e deve ser escolarizado e introjetado no aluno. Ou ainda, o mesmo conhecimento deve ser desenvolvido de maneiras diferentes, em função do ciclo de escolarização, nas séries iniciais de forma factual e nas últimas séries de forma crítica e reflexiva.
Conhecimento escolar
Já faz muitos anos que a escola é organizada em disciplinas ou matérias de ensino (matemática, português etc.), que se configuram embasadas em um conjunto exato e rigoroso de conhecimentos (Souza Junior & Galvão, 2005). Nessa escola organizada por disciplinas, que se faz presente até os dias de hoje, os conhecimentos são vistos como o alicerce da educação (Coll, Pozo, Sarabia & Valls, 2000). Cabendo a cada professor, em sua disciplina, selecionar, "didatizar" e ensinar os conhecimentos ou conteúdos críticos à formação do aluno.
Esses conhecimentos assimilados durante todo o período escolar podem ser definidos como: saber escolar, conhecimento escolar ou simplesmente conteúdo. O conteúdo, segundo Coll et al. (2000), é um conjunto de conhecimentos e formas culturais essenciais para o desenvolvimento e socialização dos alunos. Por exemplo, no caso da Educação Física Escolar, isso inclui tanto informações sobre os mecanismos fisiológicos envolvidos na produção de movimentos corporais, quanto conhecimento de natureza procedimental sobre como correr bem.
O conhecimento científico consiste numa descrição objetiva dos fenômenos do mundo, produzida com base em critérios experimentais, que permitem a eliminação de dados subjetivos e individuais, superando, assim, as controvérsias, construindo formulações verificáveis e, portanto, consensuais (Vademarin, 1998). Por meio da especialização, a ciência constrói e refina seus conceitos que, ao serem abordados pela escola, vão sofrer um processo inverso, isto é, devem novamente adquirir referências com a realidade, a fim de serem compreendidos e traduzidos numa linguagem cotidiana. O saber escolar não está dedicado à mera divulgação das novas descobertas científicas e, quando o faz, é para situá-las num contexto já conhecido pelo aluno (Vademarin, 1998).
Assim, o conteúdo ou o saber escolar é uma categoria de conhecimento distinta daquela produzida pela ciência (Vademarin, 1998). Essa distinção é clara, como explica Dewey1 (1902) citado por Graça (2001), já que o cientista pretende criar um novo conhecimento na sua área de conhecimento ao passo que o professor pretende criar um conhecimento que ajude o aluno a apropriar-se do mundo em que vive.
Pensando nos esclarecimentos feitos acima, o conhecimento na escola sofreu um processo de definição como um campo da Psicologia da Educação, isto é, desenvolvido e definido pensando sua relação com o aprendiz, no seu potencial didático.
Metodologia
A pesquisa foi desenvolvida em três fases. A primeira fase relativa à seleção dos conhecimentos, a segunda concerne à sistematização desses conhecimentos e a terceira consiste na validação da proposta apresentada.
Iniciamos a fase I: Seleção do Conhecimento Declarativo, determinando os critérios para essa seleção. O conhecimento declarativo com fins didáticos para período escolar foi selecionado de quatro livros didáticos:
1. DAVIS, R.J.; BULL,C.R.; ROSCOE, J.V.; ROSCOE, D.A. Physical education & the study of sport. London: Wolfe,1991.
2.ESHUYS,J.; GUEST, V.; LAWRENCE, J. Fundamentals of health and physical education. Edinburg: Scotprint, 1990.
3. KNEER, M.E. Basic stuff series: adolescence. Reston: AAHPERD, 1981.
4. MOHNSEN, B. Concepts and principles of physical education: what every student needs to know. Reston: AAHPERD, 2003.
No momento de seleção dos temas apresentados nos livros, levamos em consideração aqueles que poderiam contribuir diretamente para as finalidades assumidas no presente trabalho para o componente curricular na escola.
para que o indivíduo otimize suas possibilidades e potencialidades para mover-se genericamente ou especificamente de forma harmoniosa e eficaz, capacitar-se em relação ao meio em que vive e, adapta-lo, interagir e transformá-lo, sempre em busca de uma melhor qualidade de vida" (Mariz de Oliveira, 1993).
Na seleção dos temas encontrados nos livros citados, adotamos como critério as dimensões do campo de conhecimento denominado Cinesiologia (Hoffman & Harris, 2000), isto é, estudo do movimento humano nas dimensões Socioculturais, Comportamentais e Biodinâmicas. Essa opção se deu pela facilidade em delimitar os conhecimentos concernentes à dimensão declarativa do conhecimento. Na dimensão sociocultural, foram incluídos conhecimentos de áreas como Filosofia, Antropologia e Sociologia. Na dimensão comportamental, os conhecimentos incluídos foram dos temas Aprendizagem Motora, Crescimento e Desenvolvimento Motor, aspectos psicológicos do exercício. A dimensão biodinâmica abarcou os conhecimentos ligados à Biomecânica e aos aspectos biológicos da atividade física.
Com base nessas três dimensões, foram organizados e selecionados os seguintes temas (QUADRO 1):
Para a seleção, optamos por submeter o quadro de temas acima a uma avaliação realizada por docentes de nível superior, especialistas em Educação Física Escolar e atuantes em cursos de Licenciatura em Educação Física ou similar. A opção recaiu sobre instituições do Estado de São Paulo que contassem com programa de pós-graduação "stricto sensu" reconhecido pela CAPES2 e com área de concentração na dimensão sociocultural e pedagógica. Assim, cinco universidades foram identificadas e de seu corpo docente foram selecionados os que estavam envolvidos com questões da escola na graduação e na pós-graduação. Uma carta convite foi enviada.
Após o aceite em participar do estudo, enviou-se a cada docente um questionário, no qual constava a seguinte pergunta norteadora:
Quais temas você julga importantes para serem transmitidos através do processo de escolarização para que o indivíduo otimize suas possibilidades e potencialidades para mover-se genericamente ou especificamente de forma harmoniosa e eficaz, capacitar-se em relação ao meio em que vive e, adaptá-lo, interagir e transformá-lo, sempre em busca de uma melhor qualidade de vida?
Com essa questão em mente, cada docente deveria indicar a pertinência do tema para a escolarização, atribuindo valor dentro de uma escala de 1 a 5 (Escala Likert). Essa escala tem como objetivo avaliar o grau de concordância ou discordância de determinadas afirmações (Silveira & Moreira, 1999; Thomas & Nelson, 2002). Na escala Likert, proposta por Rensis Likert em 1932, os participantes são solicitados não só a concordarem ou discordarem das afirmações, mas também a informarem qual o seu grau de concordância/discordância. A cada célula de resposta é atribuído um número que reflete a direção da atitude (concordância e discordância) do respondente em relação a cada afirmação. No caso dessa pesquisa foi utilizada uma escala com cinco pontos com intervalos iguais, de 1 a 5, sendo 5 = concordo totalmente; 4 = concordo parcialmente; 3 = não tenho opinião formada; 2 = discordo parcialmente; 1 = discordo totalmente.
Na fase II, Sistematização do Conhecimento Declarativo, foram utilizados objetivos comportamentais, especificamente comportamentos esperados de saída para cada série. É uma proposta invertida de construir o currículo, que normalmente é definido de maneira crescente. Nessa proposta, inicialmente estabelecemos os comportamentos esperados para a última série do Ensino Fundamental II, 8ªsérie, e a seguir inicia-se a composição dos comportamentos esperados para as séries anteriores com o objetivo de formular pré-requisitos. Esta forma de organização curricular tem sido vista como eficiente na orientação do agir docente, na busca pela maximização da aprendizagem dos alunos (Lambert, 1996).
Para cada série do Ensino Fundamental II foram respeitados os níveis de escolaridade e o grau em que os alunos são letrados, segundo a proposta do Ministério da Educação. Além disso, levamos em consideração os objetivos definidos pelos componentes curriculares no Ensino Fundamental II (Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais, Geografia, História, Artes, Língua Estrangeira e Educação Física).
Segue, no QUADRO 2, a sistematização proposta.
A fase III referiu-se à validação da proposta. Ela foi efetuada através da aplicação de questionários fechados, utilizando-se a mesma escala de avaliação do tipo Likert; as escalas de avaliação solicitam que as pessoas façam julgamentos "de grau" em relação às várias dimensões.
O questionário foi dividido em três partes. Na primeira parte temos uma breve explicação sobre a finalidade do instrumento, seguida do termo de consentimento.
Na segunda parte, os entrevistados avaliaram a pertinência dos 36 comportamentos esperados ao final do Ensino Fundamental II.
Na terceira parte os professores analisaram a adequação da sistematização dos comportamentos esperados por séries. Essa avaliação foi realizada apenas sobre aquelas respostas 4 e 5 (concordo parcialmente e concordo totalmente) da fase anterior, onde os comportamentos apresentaram um grau de concordância. Em seguida, foi construído um outro questionário para verificar a adequação do comportamento esperado para determinada série, onde respostas 4 ou 5 foram consideradas concordantes e respostas de 1 a 3 consideradas discordantes; nesse último caso, solicitamos ao professor sugerir a série adequada no espaço designado para esse fim (QUADRO 3).
O questionário foi aplicado aos Assistentes Técnicos Pedagógicos (ATPs) e dois professores por Diretoria de Ensino do Estado de São Paulo, abrangendo assim todo o Estado de São Paulo. Esse corpo de funcionários exerce papel de liderança na rede, além de possuir larga experiência na elaboração, implementação e avaliação de currículos. Os ATPs são professores de Educação Física, efetivos ou não como professores do Estado, escolhidos pelo dirigente de ensino, sendo, portanto um cargo de confiança. No total foram colhidas as opiniões de 242 professores de Educação Física da rede Estadual de ensino, sendo 75 ATPs e 167 professores atuantes.
Resultados
A análise dos dados está dividida em duas partes. Na primeira analisamos as respostas dos docentes universitários a cerca dos temas selecionados dos livros didáticos e organizados pelas subáreas. Na segunda parte, analisamos a validação dos comportamentos esperados ao final do Ensino Fundamental II e, posteriormente, a avaliação dos comportamentos por séries.
Na etapa referente aos docentes, um deles recusou-se a preencher o questionário por entender que esses temas não devem ser abordados no segmento sugerido, participando então do preenchimento do questionário apenas sete deles. Dois docentes não concordaram com nenhum tema e cinco concordaram com alguns temas propostos, nesse contexto três razões foram levantadas. A primeira foi em relação aos temas serem abordados no Ensino Fundamental II, sendo sugerido que os temas fossem abordados em outro segmento escolar: no Ensino Médio. A segunda foi que os temas deveriam ser apresentados para o Ensino Fundamental II de forma informativa ou vivencial e para o Ensino Médio de forma mais reflexiva. E a terceira foi que alguns temas eram necessários aos professores e não aos alunos.
Fazendo uma análise sobre a seleção dos temas em si, apenas um docente citou que o enfoque de corpo dado na proposta estava inadequado, mas não ocorreu nenhuma outra sugestão a esse respeito.
Dos 88 temas selecionados, 16 tiveram menos de 50% de concordância e, portanto, foram rejeitados para o estudo. Os temas eliminados foram: força (interna, externa, aplicação e absorção), referentes à Biodinâmica; e análise da prática, curvas de crescimento, etapas do desenvolvimento motor e controle motor, referentes ao comportamento motor.
A maioria dos temas em Biodinâmica tiveram uma aceitação maior que 75%. Na dimensão Comportamental, as respostas ficaram mais divididas, equilibrando a aceitação de oito temas com 71,43% e nove temas com 57,14%. Já para todos os temas sugeridos para os Aspectos socioculturais percebeu-se que a aceitação foi de mais de 50%.
Verificando as respostas dos ATPs e Professores da rede, percebemos que a maioria dos comportamentos esperados tiveram mais de 85% de aceitação. Já os itens 1, 9 e 31 ficaram entre 75% e 84,9%; os itens 3, 7 e 8, abaixo de 74,9% (TABELA 1).
Analisando a avaliação realizada pelos professores e ATPs em face da sistematização sugerida, observamos que para os comportamentos sistematizados pelas séries não houve registro de aceitação menor que 50%, com exceção dos comportamentos 1A (Citar e apontar os principais ossos e músculos do corpo e Indicar as principais articulações) e 1B (Identificar na prática da atividade física os principais ossos, músculos e articulações). É interessante destacar que a sugestão feita das séries nesses comportamentos ficou bem dividida.
A maioria dos comportamentos por séries recebeu uma aceitação para a sistematização de mais de 80%. Para aqueles que tiveram menor aceitação, não houve uma concordância para série adequada; apenas em quatro comportamentos (3A, 14, 16B e 28) a sugestão foi praticamente unânime, constatando que essa unanimidade ocorreu para a 8ª série (TABELA 2).
Verificando as respostas dadas pelos ATPs e professores, pudemos perceber que para os comportamentos esperados na sistematização por séries, 57,8% das respostas dos professores obtiveram aceitação de acordo com a proposta.
Alguns professores e ATPs, ao responderem seus questionários, teceram alguns comentários em relação à sistematização sugerida. Alguns ATPs levantaram a questão sobre a quantidade de comportamentos esperados em aspectos biológicos em relação aos aspectos socioculturais. Alguns professores tiveram dificuldades em responder ao questionário por refletirem sobre a realidade da escola, questionando se seria possível abordar tantos temas com os alunos; outros sentiram dificuldades no que se refere ao domínio de conhecimento em relação aos temas sugeridos. Outros se sentiram capazes de criarem sua própria sistematização por séries. Mas como se pode ver nos resultados, a maioria concordou com a proposta e apenas alguns comportamentos esperados tiveram opiniões divididas entre os professores e ATPs em relação à série mais adequada.
Considerações finais
A proposta desse estudo foi selecionar, sistematizar e validar o conhecimento declarativo de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental. Acreditamos que todas as etapas foram contempladas, mas devemos fazer uma reflexão sobre os resultados obtidos nesse tipo de pesquisa. O estímulo que nos moveu durante todo o estudo foi o de contribuir para os professores de Educação Física que estão em suas escolas, trabalhando o dia todo na quadra e tendo diante de si 35 a 40 alunos por sala.
Numa pesquisa educacional devemos levar em consideração o contexto que será estudado, e cada escola possui uma realidade diferente porque cada ser humano vive numa determinada comunidade com sua própria cultura; não é possível encontrar um fator de alta concordância com relação a comportamentos esperados para cada série e que seja definitivo para a Educação Física Escolar. Logo, a presente proposta não se fecha em si: ela é apenas um início para que os professores possam justificar o que será abordado e assim organizar uma parte do seu componente curricular ao longo das séries. Cada comunidade, escola, professor ou aluno valoriza determinados conhecimentos para sua vida, como foi inclusive mostrado na coleta dos dados onde encontramos concordância de 80% e, em alguns casos, de até 100%.
Para um próximo estudo deveríamos verificar se os resultados aqui apresentados se confirmam para a realidade brasileira, já que os docentes, ATPs e professores da rede, que responderam ao questionário, eram todos do Estado de São Paulo. Sobre a amostra, também devemos refletir em relação aos ATPs, porque mesmo sendo professores de Educação Física, muitos deles não estão diretamente envolvidos com a docência.
Um outro problema nesse estudo foi a opção de selecionar os temas apenas pela análise dos livros, deixando de lado a opinião de especialistas que pesquisam os aspectos biológicos, comportamentais e socioculturais do movimento humano. Apesar dessa ter sido a idéia inicial para o estudo, a mesma foi abandonada após o projeto piloto, já que o especialista não era capaz de pontuar os temas relevantes para serem abordados na escola. Acreditamos que uma alternativa seria submeter os temas selecionados nos livros a alguns docentes especialistas nas diferentes dimensões e, posteriormente, submeter o que daí resultar aos docentes que pesquisam a Escola e a Educação Física Escolar.
A seleção realizada a partir de livros estrangeiros é uma limitação do presente trabalho, uma vez que os mesmos estão baseados numa matriz social e cultural diferente da nossa. Entretanto, não foram encontrados no momento da pesquisa referencias nacionais.
Como citado anteriormente, os conhecimentos propostos nesse estudo não são ainda os conteúdos didáticos das aulas de Educação Física, eles necessitam ser trabalhados em aula.
Todos os temas apresentados podem ser pedagogizados pelo componente curricular da Educação Física, desde que sejam selecionados como conhecimentos a serem adquiridos e apreendidos pelos alunos. Tomar um tema como conhecimento de um componente curricular implica considerá-lo como construção histórica da humanidade, algo que é patrimõnio cultural e deve ser escolarizado e introjetado no aluno (como afirmou um dos docentes em resposta ao questionário).
Considerando a proposta aqui validada, seria necessário conduzir um novo estudo em que especialistas da Cinesiologia fariam uma análise dos conhecimentos selecionados nos livros. Vale destacar que a associação entre a Cinesiologia e a sistematização do componente curricular desempenhou um papel importante. Ela possibilitou uma melhor organização do conhecimento produzido nas diferentes áreas. Todavia, o conhecimento produzido na própria Cinesiologia é fragmentado e de difícil síntese e integração, uma vez que ele não foi produzido de forma interdisciplinar. Mesmo o modelo de dimensões, níveis de análise ou de esferas não superam o problema, já que em sua maioria os pesquisadores continuam agindo como se estivessem trabalhando em subdisciplinas. A fragmentação que daí resulta acaba se espelhando na construção de propostas para caracterização do componente curricular.
Embora a caracterização acadêmica da área de educação física advinda do modelo de cinesiologia tenha contribuído para orientar a seleção dos conhecimentos do componente curricular, não significa que o conhecimento da educação física escolar resulte da adição de conhecimentos das subdisciplinas.
Finalmente, pensando na continuidade do estudo, o próximo passo será a aplicação dos comportamentos esperados em escolas de Ensino Fundamental II e verificar se a fragmentação realmente irá para a prática ou não.
Notas
1. DEWEY, J. The child and the curriculum. In: BOYDSTON, J. (Ed.). John Dewey: the middle works, 1899-1924. New York: Longman, 1902.
2. Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação do Brasil.
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