Analisando diferentes períodos da história política brasileira é possível perceber a centralidade do Estado no processo de organização do esporte no Brasil. Esta presença forte não deve ser alvo de macro explicações, pois encontra-se permeada por uma pluralidade de interesses e arranjos institucionais de natureza cultural, ideológica, econômica e política, exigindo estudos específicos das práticas mobilizadas em torno do esporte, em suas diversas manifestações: o esporte de alto rendimento e sua realização; as relações de mercado presentes no setor; a indústria de equipamentos e materiais esportivos; o esporte como prática de lazer; a mídia esportiva; o esporte como conteúdo da Educação Física e como prática escolar; o sistema esportivo nacional legalmente institucionalizado, dentre outros.
Problematizamos aqui as políticas nacionais para o esporte escolar: o que pretendeu (e pretende) o Estado, pelas ações dos sujeitos e grupos que o constituem, ao propor e realizar programas esportivos escolares? Tentar responder significa analisar as relações conformadas entre duas instituições sociais distintas: a escolar e a esportiva. Ambas possuem lugar de centralidade no modo de organização da sociedade moderna; permeiam a infância e a juventude da maioria das pessoas; são socialmente valorizadas como parte do processo civilizador[2] e, no âmbito da organização histórica dos direitos sociais, o acesso à escola e ao esporte têm sido reivindicados como direitos universais[3].
A escola e o esporte são instituições que comportam em seu interior múltiplas determinações e variados arranjos e, assim, vêm sendo alvo de debates acerca de seus fins, métodos e interesses sociais.
Pierre Bourdieu (1983) argumenta que "a história do esporte é uma história relativamente autônoma que, mesmo estando articulada com os grandes acontecimentos da história econômica e política, tem seu próprio tempo, suas próprias leis de evolução, suas próprias crises, em suma, sua cronologia específica" (p. 137). A instituição esportiva, ao mesmo tempo produto e produtora da modernidade, constitui campo de relativa autonomia, conformando códigos, regras, valores e práticas que lhes são próprias. Para Norbert Elias (1992), o esporte compõe o longo processo civilizador da modernidade, principalmente no que tange ao controle dos impulsos, em especial aqueles relativos à violência e à agressividade.
Sobre a escola, Luciano Mendes de Faria Filho (2001) comenta que sua presença na vida social "faz-se sentir além de seus muros, irradiando para o conjunto da sociedade, constituindo referência importante para a definição de identidades pessoais e coletivas, públicas e privadas, políticas e profissionais, entre outras." O autor propõe que a existência de um processo de escolarização da sociedade, isto é, "a paulatina produção de referências sociais tendo a escola, ou a forma escolar de socialização e transmissão de conhecimento, como eixo norteador de seus sentidos e significados" (p. 03).
Assim, tanto a escola como o esporte constituem práticas sociais específicas, que comportam singularidades, com interesses e atores também específicos. Nestes termos, pensar as relações entre o esporte e a escola significa investigar o percurso histórico de cada um desses campos de modo a identificar as circunstâncias nas quais os mesmos se aproximaram, ou não.
A gênese do que hoje denominamos esporte moderno parece localizar-se no século XVIII, nas escolas inglesas reservadas à burguesia, as public schools , onde jogos populares assumiram novos significados sustentados pelo ideário do fair play e pela busca de uma racionalidade capaz de assegurar sua previsibilidade e calculabilidade. Este percurso inicial desdobrou-se na constituição de um corpo de regulamentos específicos e um corpo de dirigentes especializados[4]. Assim, tendo a Inglaterra como berço, podemos inferir que foi a partir da escola que o esporte afirmou sua presença na sociedade moderna. No século XX tornam-se plurais as possibilidades de aproximação e também de distanciamento entre essas instituições.
A origem inglesa do esporte moderno é aqui tomada como referência, lembrando-se que em outros países encontram-se trajetórias com características distintas. No Brasil, esporte e escola fazem percursos relativamente autônomos em finais do século XIX e início do século XX. Regra geral, os exercícios ginásticos é que ocupavam lugar de centralidade como prática corporal na escola.[5] Há indicações de que foi em meados da década de 1920, a partir das primeiras aproximações promovidas pelo Estado, que começa a acontecer a articulação entre estes dois setores da vida social.[6] As reformas do ensino ocorridas em diferentes Estados brasileiros naquele momento parecem confirmar esta hipótese.
Ao debater a aproximação entre esporte e escola, há que se considerar que nem sempre os interesses escolares se coadunam com os interesses esportivos, ou vice-versa, na medida em que, a princípio, seus códigos, valores, normas e funções sociais podem ser bastante distintos. O desafio, então, é perceber na história recente desta aproximação a existência de alguns arranjos que tendem a integrá-los de forma substantiva. Podemos citar por exemplo a acessibilidade da escola à lógica excludente e seletiva do esporte, ou a adoção do princípio competitivo como estratégia de ensino-aprendizagem[7], de um lado. E de outro, a ampla massificação que o esporte conquista na sociedade moderna por intermédio de sua transposição didádica[8], isto é, quando é transformado em conhecimento a ser ensinado na escola (sua escolarização).
Tomando de empréstimo a expressão utilizada por Guy Vicent, Bernard Lahire & Daniel Thin (2001) parece razoável especular que o processo de expansão experimentado pelo esporte só foi possível pelo fato dos sujeitos e grupos nele envolvidos terem assumido a "forma escolar" como uma estratégia de socialização tanto na escola como fora dela. Para estes autores,
"A emergência da forma escolar, forma que se caracteriza por um conjunto coerente de traços – entre eles deve-se citar, em primeiro lugar, a constituição de um universo separado para a infância; a importância das regras na aprendizagem; a organização racional do tempo; a multiplicação e a repetição de exercícios, cuja única função consiste em aprender e aprender conforme as regras ou, dito de outro modo, tendo por fim seu próprio fim -, é a de um novo modo de socialização, o modo escolar de socialização. Este não tem cessado de se estender e de se generalizar para se tornar o modo de socialização dominante de nossas formações sociais." ( p.37-38)
Nestes termos, é interessante notar que as principais características do processo de socialização do esporte são claramente escolares, tais como: seleção de equipes por faixas etárias; adoção de procedimentos pedagógicos que transformam as situações de aprendizagem em 'aulas'; presença de 'professores' especializados como requisito de competência e, por fim, a existência das chamadas 'escolinhas' ou escolas de esporte, cujos nomes são já reveladores.
Assim, acreditamos ser importante investigar se as práticas escolares contribuíram no processo de massificação/socialização do esporte, identificando sentidos e significados produzidos neste processo. Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista os estudos que já expressam o fato de que o esporte na escola tem se constituído muitas vezes como "um braço prolongado da própria instituição esportiva"[9].
Poderíamos, então, perguntar: em que medida a instituição esportiva, em seu processo de autonomização, foi influenciada pela "forma escolar" de socialização? A 'chegada' do esporte na escola traz a essa instituição elementos estranhos ao universo escolar?
De acordo com Guy Vicent, Bernard Lahire & Daniel Thin (2001), a forma escolar como estratégia de socialização não se limita aos muros da escola, estendendo-se a outras práticas e instituições sociais. Inversamente, outras formas de relações sociais também adentram a escola, produzindo muitas vezes um tensionamento com a lógica constituída pelo universo escolar.
Trata-se de um tema que pode ser investigado por diferentes campos acadêmicos. De forma mais específica, interessa-nos problematizar alguns dos sentidos e significados historicamente construídos para a instituição escolar, quando a mesma se relaciona com as políticas e os programas públicos relativos ao desenvolvimento e realização do esporte.
Constituem aqui indagações centrais: a escolarização teria sido a intenção principal das políticas para o esporte? Por que a escola? Que eixos têm norteado as políticas públicas de esporte na escola? Para o enfrentamento destas questões, muitos são os caminhos possíveis e os estudos necessários.[10] A delimitação proposta para este ensaio é a de compreender alguns indicadores da relação esporte-escola no sistema educacional brasileiro, atentos a um duplo movimento que esta ela inaugura: o processo de escolarização do esporte, que conforma as práticas esportivas aos rituais, códigos e valores da instituição escolar, pode também produzir, na tensão que institui, um processo de esportivização da escola, ou seja, a escola passa a incorporar em sua lógica e em suas práticas elementos próprios do universo esportivo.
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