Partindo do pressuposto que, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), o calendário escolar anual deve ter pelo menos duzentos dias letivos com duração mínima de quatro horas diárias, sabe-se que grande parte desse tempo a criança/jovem passa sentado em um mobiliário escolar. Sendo assim, além do programa de ensino, não menos importante para a formação do aluno é a adequação ergonômica do ambiente, que envolve determinadas condições de ordem física, como a limpeza, a organização, a conservação, a iluminação, a temperatura, o ruído e o mobiliário escolar (VILLA; SILVA, 2000).
Segundo Moro et al. (1997), o mobiliário escolar, juntamente com outros fatores físicos, é um elemento da sala de aula que influi diretamente no desempenho, segurança, conforto e no comportamento dos alunos. Tendo em vista que o mobiliário determina a configuração postural dos alunos, e consequentemente impõe esforços, dispêndios e constrangimentos, este mantém uma relação direta com a absorção de conhecimento (NUNES et al., 1995).
Outro fator a ser destacado como um potencializador de desvios posturais em crianças é o uso inadequado da mochila escolar. Segundo Bracialli e Vilarta (2000), crianças que utilizam mochilas com fixação dorsal apresentam aumento da flexão anterior do tronco, provocando aumento da exigência da musculatura lombar, resultando em acréscimo da compressão intradiscal a altura de L5-S1. Já aquelas que usavam mochilas com fixação escapular, apresentaram alterações no plano látero-lateral, sendo observados desalinhamentos dos ombros e na distância cotovelo-tronco, além do desenvolvimento de curvaturas laterais (escoliose).
Neste sentido, a Ergonomia tem muito a contribuir, pois os aspectos biomecânicos e fisiológicos da postura sentada e em pé, a adoção de posturas fixas por períodos prolongados, os limites aceitáveis para levantamento de peso, o tipo de mobiliário adequado, entre outros itens relacionados à interação das pessoas com o ambiente, são objetos de estudo desta área (ANARUMA; CASAROTTO, 1996). Añez (2001) acrescenta que não existe uma categoria profissional capaz de proporcionar uma solução ergonômica completa, de maneira que engenheiros, médicos, professores de Educação Física e outros devem trabalhar em conjunto.
Neste sentido, o presente estudo tem como proposta central destacar o papel do professor de Educação Física como promotor de princípios ergonômicos na escola.
Questões ergonômicas na escola
O progresso tem proporcionado à população melhores condições de vida e atividades, entretanto surgem objetos, bens e mobiliários que, criados para proporcinar conforto e descanso, tornaram-se incômodos, acometendo a estrutura física humana, transformando-se em agentes nocivos ao corpo humano (NEGRINNI et al., 2002).
Os índices de prevalência de dor lombar na idade escolar são semelhantes aos encontrados em adultos, no entanto tendem a aumentar com a idade, sendo mais frequentes entre os 35 e os 55 anos (WATSON et al., 2002). A literatura especializada (PANJABI, 2003; RENKAWITZ et al., 2006; VOGT, 2003) destaca que as causas mais frequentes da lombalgia são: posturas inadequadas, desequilíbrios das estruturas ósteo-ligamentares e musculares que resultam em instabilidade do complexo lombo-pélvico e quadros dolorosos a ela relacionados, inatividade, posturas hipocinéticas ou lesões que geram desequilíbrios entre comprimento, força, resistência e coordenação muscular.
Em um estudo analisando a adequação ergonômica e o conforto de salas de aula de uma instituição de ensino superior, Siqueira et al. (2008) constataram que 58% dos entrevistados relatavam desconforto na sala de aula, sendo que 96% destes afirmavam que o principal fator de desconforto eram as cadeiras, que não estavam em conformidade com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), e as características antropométricas dos usuários. Neste mesmo estudo ainda foi constatado que 90% dos universitários assumiam posturas inadequadas durante as aulas e 82,5% referiam uma ou mais queixas de dor, sendo que em 61% dos casos as dores estavam localizadas na região da coluna vertebral.
Segundo Carvalho (2000), o mobiliário escolar é de suma importância no processo educacional, pois é responsável pelo conforto físico e psicológico do aluno, favorecendo seu aprendizado, e deve ser adequado ao uso e ao conteúdo pedagógico da escola.
Atualmente, nas escolas brasileiras são utilizados mobiliários inadequados às diferenças regionais e às situações didáticas, submetendo crianças a um local não só desfavorável para o bom andamento do aprendizado, mas também para a sua saúde (REIS et al., 2003). Ao avaliar transtornos emocionais de crianças e adolescentes, Sukiennik (2000) afirma que os fatores relacionados à saúde podem prejudicar o ensino e a aprendizagem, pois crianças com sintomas frequentes de dores não terão motivação para desenvolver as atividades escolares, acarretando em perda da concentração, prejudicando o comportamento e a produtividade em sala de aula.
Na postura sentada, a circulação sanguínea sofre uma alteração significativa, tendo em vista que o retorno do sangue pelas veias até o coração é dificultado pela pressão exercida na parte posterior das coxas (REIS et al., 2003). Esta situação, muitas vezes é agravada pela inadequação do mobiliário escolar, principalmente quando este não permite o apoio dos pés no chão, o que pode comprometer a coluna vertebral, interferindo no comportamento dos alunos e refletindo diretamente no ensino-aprendizagem (REIS et al., 2003).
Visando adequar as carteiras escolares às dimensões antropométricas dos alunos, a ABNT (NBR 14006:2008) estabelece sete tamanhos diferentes de mesa e cadeira para instituições de ensino em todos os níveis, onde deverão ser observadas as variáveis antropométricas de cada aluno para a seleção do mobiliário. Porém, na prática essa norma não é cumprida, talvez devido à falta de dados antropométricos dos alunos ou porque as salas de aulas são usadas para diferentes níveis escolares com diferentes faixas etárias, ou ainda, por falta de informação e iniciativa dos gestores da educação no Brasil.
Apesar de estar comprovada a necessidade da utilização de mobiliário adequado na postura sentada, geralmente esta não é contemplada tanto nas atividades de vida diária e, principalmente, no ambiente escolar (AINHAGNE; SANTHIAGO, 2009).
A mochila escolar que, inicialmente, foi projetada para proporcionar facilidade e conforto no transporte do material escolar no deslocamento do domicílio à escola, atualmente é utilizada de maneira abusiva, submetendo crianças e adolescentes a sérios e incalculáveis desvios posturais (TREVISAN, 2005). Aqueles que utilizam mochilas com fixação dorsal ou escapular podem apresentar um conjunto de alterações posturais que desencadeiam prejuízos significativos às estruturas musculoesqueléticas, devido aos ajustes posturais e ações compensatórias causadas pela aplicação de cargas assimétricas (BRACCIALLI, 2000; BRACKLEY et al., 2004; PEREZ, 2002).
Sheir-Neiss et al. (2003) destacam que há um aumento do número de livros e cadernos que as crianças e adolescentes levam à escola em suas mochilas desde o ensino fundamental até o ensino médio, desta maneira é necessário buscar subsídios que expliquem os problemas ocasionados à coluna vertebral, provocados por hábitos prejudiciais adotados pelas crianças desde o início da infância.
Ao quantificar o peso do material escolar nas mochilas dos alunos, Forjuoh et al. (2004) verificaram a necessidade de uma intervenção preventiva imediata, visando evitar ou minimizar as possíveis alterações posturais e estruturais da coluna vertebral das crianças e adolescentes. Paula et al. (2009) corroboram com o estudo anterior, pois constataram que 30% dos estudantes de 10 a 19 anos de idade transportavam cargas (14,9 ± 4,8% da massa corporal) superiores às permitidas pela legislação vigente (10% da massa corporal), estando assim expostos a riscos elevados de lesão na coluna vertebral.
Diante desses fatos, fica evidente que a eventual interface ergonômica, entre a engenharia do produto e a Educação Física, não confere unicamente ao profissional da Educação Física, pois este não possui bagagem suficiente para análise de produto, do ponto de vista de sua concepção (AINHAGNE; SANTHIAGO, 2009). Os mesmos autores destacam que a recíproca também se faz verdadeira, pois um profissional da área de design não dispõe de conhecimento sobre a prescrição de exercícios. Añes (2001) acrescenta que nenhuma categoria profissional é capaz de dar uma solução ergonômica completa, assim se faz necessária a constituição de equipes multidisciplinares para a viabilização de projetos mais abrangentes. Mas este fato não impede que o profissional de Educação Física contribua para a difusão de princípios ergonômicos na escola, como parte da conscientização dos alunos sobre aspectos vinculados à saúde e a qualidade de vida.
O papel do professor de Educação Física na difusão da ergonomia
Segundo a Associação Brasileira de Ergonomia: "Entende-se por Ergonomia o estudo das interações das pessoas com a tecnologia, a organização e o ambiente, objetivando intervenções e projetos que visem melhorar, de forma integrada e não-dissociada, a segurança, o conforto, o bem-estar e a eficácia das atividades humanas." (IIDA, 2005).
A ergonomia é marcadamente multidisciplinar: médicos, engenheiros, arquitetos, desenhistas industriais, anatomistas, fisiologistas, psicólogos, sociólogos, antropólogos, enfim, profissionais das mais diversas áreas colaboram para que a relação entre o ambiente profissional e o trabalhador ocorra de maneira mais harmônica e saudável (LAVILLE, 1977; VERDUSSEM, 1978). Inicialmente a Ergonomia era aplicada apenas na área do trabalho, projetando máquinas e equipamentos de segurança com desenho adequado aos usuários, organizando adequadamente as atividades ocupacionais, visando minimizar o estresse sobre o sistema músculo-esquelético causado pela manutenção de posturas em pé e sentado por longos períodos ou do excesso de repetitividade de movimentos (McCLELLAND, 1982). Com o passar do tempo a Ergonomia ampliou seu campo de atuação, sendo então aplicada a qualquer ambiente onde ocorram atividades humanas, incluindo o ambiente doméstico e escolar (McCLELLAND, 1982).
De acordo com o artigo 13 da resolução de número 090/2004, em que o CONFEF (2004) dispõe sobre o Estatuto do Conselho Federal de Educação Física, são definidos os campos de atuação e as competências do profissional de Educação Física:
"O Profissional de Educação Física é especialista em atividades físicas, nas suas diversas manifestações - ginásticas, exercícios físicos, desportos, jogos, lutas, capoeira, artes marciais, danças, atividades rítmicas, expressivas e acrobáticas, musculação, lazer, recreação, reabilitação, ergonomia, relaxamento corporal, ioga, exercícios compensatórios à atividade laboral e do cotidiano e outras práticas corporais, sendo da sua competência prestar serviços que favoreçam o desenvolvimento da educação e da saúde, contribuindo para a capacitação e/ou restabelecimento de níveis adequados de desempenho e condicionamento fisiocorporal dos seus beneficiários, visando à consecução do bem-estar e da qualidade de vida, da consciência, da expressão e estética do movimento, da prevenção de doenças, de acidentes, de problemas posturais, da compensação de distúrbios funcionais, contribuindo ainda, para consecução da autonomia, da auto-estima, da cooperação, da solidariedade, da integração, da cidadania, das relações sociais e a preservação do meio ambiente, observados os preceitos de responsabilidade, segurança, qualidade técnica e ética no atendimento individual e coletivo."
Desta maneira, é possível constatar que o professor de Educação Física possui atribuições que o qualificam para atuar como um agente difusor de princípios ergonômicos na escola. Além disso, estudantes demonstram interesse em receber, durante as aulas de Educação Física, informações relativas a fatores que influenciam a saúde, incluindo qualidade de vida, atividade física e ergonomia (BIANCHETTI, 2005).
Como a literatura cita que vários fatores do contexto escolar podem interferir na postura corporal dos estudantes (MORO et al., 1997; BRACIALLI; VILARTA, 2000; TREVISAN, 2005; SIQUEIRA et al., 2008), constata-se a necessidade de implementar medidas profiláticas que enfatizem a postura corporal de crianças e adolescentes, considerando a biomecânica da coluna vertebral e as influências que o meio ambiente exerce nas atitudes e hábitos desenvolvidos e adotados pelos indivíduos. Estas metas podem ser atingidas por meio de programas educativos junto às escolas, com o intuito de conscientizar a população da seriedade da situação, bem como, da detecção e tratamento precoce dos desvios posturais (AINHAGNE; SANTHIAGO, 2009).
Detsch et al. (2007) relataram alta prevalência de alterações posturais em adolescentes, e destacaram a importância de avaliações posturais periódicas realizadas pelo professor de Educação Física nas escolas, visando a identificação precoce dessas alterações. Os autores ainda acrescentam que a criação de programas de educação em saúde, principalmente voltados para a adoção de posturas corretas, é de grande importância na escola. Cardon et al. (2002) corroboram afirmando que o professor de Educação Física desempenha um papel fundamental na difusão do conhecimento relacionado a educação postural nas escolas, com base em resultados obtidos em estudos comparando alunos com e sem orientações.
Moro (2005) recomenda que sejam elaborados manuais práticos a respeito da biomecânica da postura corporal e atividades na posição sentada, pois o que se percebe na prática é a falta de informação, principalmente por parte dos educadores, de como instruir os alunos a assumirem posturas adequadas, atuando de forma crítica e consciente na escolha do mobiliário escolar.
Com o intuito de promover a postura sentada correta, técnicas adequadas de levantamento de carga e prevenção de lesões no esporte para estudantes de 10 a 12 anos, Robertson e Lee (1990) realizaram um programa de educação postural baseado em diagramas e vivências práticas experimentando situações corretas e incorretas. Os autores constataram que o programa provocou mudanças imediatas nos hábitos posturais ao sentar e levantar cargas.
Feingold e Jacobs (2002) realizaram um estudo experimental, no qual instruíram um grupo de crianças com orientações sobre maneiras adequadas de transporte da mochila. Os resultados mostraram resultados benéficos aos integrantes do grupo exposto à intervenção, sendo que 87,5% destes continuaram utilizando as mochilas adequadamente após a intervenção.
Goodgold e Nielsen (2003) incluíram nas aulas de Educação Física de uma escola um programa de conscientização do uso adequado de mochilas para o transporte do material escolar. Após um período de intervenção os pesquisadores constataram que 42% dos alunos mudaram o modo como transportavam suas mochilas e 93% melhoraram seus conhecimentos a respeito do uso da mochila.
Considerações finais
Diante do exposto, é possível afirmar que o professor de Educação Física na escola poderia contribuir para a prevenção de distúrbios ósteo-musculares ao incluírem princípios da ergonomia entre os objetivos a serem atingidos na sua atuação. Entre esses princípios destaca-se a análise detalhada do contexto educacional, incluindo o ambiente escolar (salas de aula e mobiliário escolar) e o deslocamento escola-casa (transporte do material escolar, marcha e postura em pé e sentada em veículos), para a identificação de possíveis fatores que possam afetar o desempenho, a segurança, o conforto e o comportamento dos alunos.
Tendo em vista que muitos dos problemas "ergonômicos" nas escolas são oriundos da estrutura organizacional, o professor de Educação Física poderia atuar como um promotor da saúde dos seus alunos ao difundir princípios ergonômicos entre os outros professores e gestores das escolas, visando melhorias estruturais e organizacionais do ensino.
Autores:
Diogo Cunha dos Reis - diogo.biomecanica@gmail.com
Adriana Seára Tirloni - adri@tirloni.com.br
Eliane Ramos - nannyrams53@yahoo.com.br
Antônio Renato Pereira Moro - moro@cds.ufsc.br
Fonte
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