Segundo uma determinada produção acadêmica da área da educação física a partir da década de 1980, de forte acento crítico, com a qual discutirei ao longo desse trabalho, a educação física escolar foi conformada de forma autoritária pelo Estado no Brasil, a partir das reformas educacionais de 1968 (Lei 5.540) e 1971 (Lei 5.692 e decreto 69.450). Segundo as análises oriundas desses estudos, no interesse do desenvolvimento de um maior grau de eficiência produtiva no mundo do trabalho e, pressupondo a importância da educação escolarizada para se atingir este fim, a tecnicização do ensino patrocinada pelo governo teria como premissa básica a discipli-narização, a normatização, o alto rendimento e a eficácia pedagógica. Esse pressuposto seria orientado pelo alinhamento do país a uma ordem mundial calcada no desenvolvimento associado ao capital internacional, mais explicitamente, ao norte-americano. Segundo tal concepção, é irrefutável a tese da dependência estrutural, o que implica necessariamente a dependência cultural, aí incluída a educação em geral e, no âmbito deste trabalho, a educação física escolar em particular.
Dentro dessa perspectiva os intelectuais a serviço do governo teriam gestado as políticas públicas para a educação no período aqui abordado. Para a educação física escolar a Lei 5.692/71 reserva, em seu artigo 7 º, um espaço de obrigatoriedade nos currículos escolares. Essa obrigatoriedade foi regulamentada com o Decreto 69.450/71, que impôs padrões de referência para a prática de educação física no interior da escola, caracterizada como atividade, ainda que a educação física passasse a ter todos os pressupostos característicos da configuração de uma disciplina escolar (Chervel, 1990).
Segundo uma interpretação corrente na historiografia, o esporte, aliado à interferência governamental no desenvolvimento da educação física escolar, tornava-se referência praticamente exclusiva para a prática de atividades corporais no plano mundial, seja dentro ou fora da escola. Isso teria ocorrido, em parte, porque numa certa perspectiva o esporte codificado, normatizado e institucionalizado pode responder de forma bastante significativa aos anseios de controle por parte do poder, uma vez que tende a padronizar a ação dos agentes educacionais, tanto do professor quanto do aluno; noutra, porque o esporte se afirmava como fenômeno cultural de massa contemporâneo e universal, afirmando-se, portanto, como possibilidade educacional privilegiada. Assim, o conjunto de práticas corporais passíveis de serem abordadas e desenvolvidas no interior da escola resumiu-se à prática de algumas modalidades esportivas. As práticas escolares de educação física passaram a ter como fundamento primeiro a técnica esportiva, o gesto técnico, a repetição, enfim, a redução das possibilidades corporais a algumas poucas técnicas estereotipadas.
Essas são algumas das teses da historiografia. Mas teriam os professores de educação física adotado passivamente os pressupostos teóricos e metodológicos para a educação física escolar difundidos pelo Estado e divulgados pela Revista Brasileira de educação física e Desportos (periódico do MEC com ampla circulação nacional), ou a prática cotidiana da educação física escolar desenvolveu-se com uma autonomia relativa ante as orientações de um governo autoritário? As evidências empíricas, a serem exploradas ao longo deste artigo, não permitem respostas esquemá-ticas para essa questão.
Tais suposições, ainda que não sejam de todo descartadas, carecem freqüentemente de uma análise empírica mais acurada. Se, por um lado, a partir de meados da década de 1970, a produção acadêmica em educação física começava a se desenvolver com critérios científicos, principalmente pelo início de um processo de titulação (mestrado e doutorado) de seus profissionais e pela emergência dos primeiros cursos de pós-graduação no Brasil, por outro lado, já estava sendo produzida e discutida no âmbito educacional uma literatura baseada nas teorias críticas, com as quais os profissionais da educação física travaram contato tardio, uma vez que essas teorias só foram apropriadas pela teoria da educação física no início dos anos 1980. Esses dois movimentos infirmam a tese de um transplante puro e simples de teorias estrangeiras. As evidências mostram que havia embates bastante significativos em torno da questionável importância do esporte como prática pedagógica, o que ocorria até mesmo no interior de um periódico do MEC.
A historiografia desenvolveu uma estreita interpretação que imputa à educação física escolar uma função de reprodução do ideário oficial, calcado na ideologia da segurança nacional e do Brasil grande. Além disso, a tecnicização das práticas corporais representaria melhoria das condições da força de trabalho, no sentido de torná-la mais eficiente e eficaz no processo de produção; a racionalidade e o planejamento da economia da educação conformavam, então, as políticas públicas e, conseqüentemente, as práticas escolares, deixando pouco ou nenhum espaço para a intervenção dos sujeitos na história.
Essa visão está fortemente influenciada pela perspectiva de um a priori estrutural-economicista nas relações do governo com a sociedade civil, atuando aquele como mediador dos interesses entre o capital e o trabalho, para garantir a acumulação ampliada do primeiro. O "Estado" é concebido como uma instância que paira acima dos conflitos e dos consensos e determina a prática e os interesses cotidianos dos sujeitos na história. Essa perspectiva marca ainda uma profunda crença na última instância da estrutura econômica como orientadora da organização da cultura e das práticas culturais em particular, como é o caso da educação escolarizada.
Ora, como conceber os sujeitos históricos como indivíduos incapazes de gerir o seu cotidiano ou, de forma ainda mais radical, como massa de manobra apenas e sempre? Isso equivaleria a extrair do sujeito toda a sua autonomia, ainda que relativa, em face das vicissitudes da vida social e toda sua capacidade de indignação e resistência diante dos modelos preconcebidos de organização da cultura. Assim, ao operar com as evidências não foi difícil refutar uma leitura determinista e economicista do materialismo histórico, característica de uma determinada leitura da história, que extrai dos sujeitos toda sua potência criadora e os reduz a pouco mais que simples insumos culturais. Nessa perspectiva os agentes históricos não teriam qualquer possibilidade de mover-se com autonomia diante das rígidas estruturas ideológicas determinadas pelo Estado. Moldar-se a determinados modelos culturais impostos de forma imperativa seria então tudo o que restaria aos mais diversos sujeitos.
Essa perspectiva da história da educação física foi marcada por uma visão linear, um tanto mecânica, desenvolvida no âmbito da pesquisa em história da educação no Brasil a partir da década de 1970 a qual, por sua vez, se alimentou das discussões desenvolvidas no interior das Ciências Sociais. Assim, um dos objetivos deste artigo é evidenciar os limites desse tipo de abordagem, tendo como referência para análise uma determinada produção teórica da história da educação no Brasil a partir da década de 1970 e a influência desta produção mais ampla sobre a pesquisa em educação física no Brasil a partir da década de 1980. Já existe um acumulo significativo de estudos que fazem a crítica da produção historiográfica da educação brasileira, motivo pelo qual resolvi deter-me exclusivamente na produção historiográfica da educação física escolar. Mas trabalhei sempre tendo no horizonte as obras de Vieira (1983), Libâneo (1989), Freitag (1986), Saviani (1987, 1988, 1989), Buffa e Nosela (1991), Germano (1993), Cunha e Góes (1994) e Guiraldelli Jr. (1994). Na perspectiva de crítica a essa produção, bem como a outros estudos aqui não referidos, o leitor tem à disposição os trabalhos de Rashi (1990), Aranha (1992), Azanha (1992), Vieira (1994) e Barreira (1995).
A escolha de obras e autores da educação física deu-se pela conjugação de dois fatores distintos:
a) a crítica aos modelos (políticas) gestados pelo Estado naquele período
b) a utilização de um referencial de análise que tenha como objeto privilegiado a educação escolar.
Esse recorte se faz necessário para precisar o alcance e os limites do trabalho ao qual me proponho: primeiro, traçar um quadro do quanto foi restrita a análise da dimensão social, política, econômica e cultural brasileira, sob a ótica de uma tradição de pesquisa comprometida com a transformação da educação escolar brasileira em geral e a educação física escolar em particular, a partir da década de 1980. E, segundo, buscar recolocar a questão das análises das práticas escolares, particularmente da educação física, na nossa história recente, a partir de um olhar para dentro da escola, devolvendo aos sujeitos o seu lugar na história da educação física escolar no Brasil.
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